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A Amazônia se aproxima do ponto de ruptura, diz Carlos Nobre

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Como o senhor observa os compromissos assumidos no Acordo de Paris mundialmente, assim como especificamente os do Brasil?

Primeiro, os compromissos até 2030 levariam o planeta a aumentar sua temperatura na faixa de 2,8ºC a 3,3ºC até o final do século, e continuaria subindo. As metas estão muito longe de garantir que ficaremos dentro dos 2ºC, muito menos de 1,5ºC. Alguns países estão nas trajetórias das contribuições nacionalmente determinadas, inclusive os Estados Unidos. Por mais que o presidente Donald Trump tenha ameaçado tirar o país do Acordo de Paris, as emissões americanas diminuíram em 2017 na mesma taxa dos últimos dez anos e estudos preliminares afirmam que a redução continuou em 2018.

As metas do Brasil para 2025 e 2030 são as mais ambiciosas entre os países em desenvolvimento: até 2025, 37% de redução das emissões em relação a 2005 e 43% de redução até 2030. Estados Unidos, China (a maior emissora) e Índia, a terceira, colocaram metas relativas. Até 2030, apenas prometem parar o aumento das emissões.

Enquanto os desmatamentos despencavam, o Brasil praticamente garantia sua trajetória correta. Mas depois de 2014 os desmatamentos estacionaram e, nos últimos anos, voltaram a aumentar. Já as emissões por queima de combustíveis fósseis aumentaram um pouco. Em 2014 e 2015, as secas interromperam a operação de muitas hidrelétricas, então as termelétricas entraram em máxima potência. As usinas eólicas têm se inserido muito rapidamente, mas ainda em um percentual pequeno no quadro de energia total – nem 10% da eletricidade. Já é importante, mas não o suficiente para garantir que as emissões provocadas pelos setores de energia e transportes sinalizassem uma tendência de queda.

Os desafios são maiores em outras áreas, como a redução das emissões na agricultura. A boa notícia é que elas vêm subindo em uma proporção menor do que o aumento do PIB agrícola. Em outras palavras, o setor econômico agropecuário está ficando mais eficiente, emite menos para produzir a mesma quantidade de produtos. Então, o Brasil pode cumprir seus compromissos até 2025, 2030? Pode, se reduzir drasticamente os desmatamentos.

No discurso de campanha, o presidente eleito Jair Bolsonaro sinalizava tirar o país do Acordo de Paris, pois, na opinião dele, os compromissos iam contra a “soberania nacional”. Que impactos sociais, ambientais e econômicos uma possível saída do Brasil do Acordo de Paris poderia trazer?

Olha, de fato essa possibilidade já foi descartada pela equipe do novo governo. Mas me pergunto se haverá alguma vacilação do governo para atingir as metas. Nos Estados Unidos, a vacilação do presidente Trump não teve muito impacto, porque lá o principal fator de emissão é a queima de combustíveis fósseis (80%). Nos EUA, já começou uma onda muito forte de substituição por fontes renováveis – eólica e solar. É um movimento enorme na economia americana, que gera centenas de milhares de empregos por ano e os preços são competitivos. Liderados pela Califórnia e por Nova York, 17 estados americanos assinaram compromissos rigorosos.

No Brasil é diferente, porque aqui 65% das emissões vêm de desmatamentos e agricultura. Então, temos que reduzir os desmatamentos e tornar nossa agricultura mais neutra. Se houver sinalização de que o “Velho Oeste” voltará a imperar no Brasil, se a ideia de desmatar o quanto quiser e de invadir terras públicas prosperar, eu vejo com grande preocupação a questão do respeito aos compromissos ambientais.

É lógico que o governo federal é muito importante para isso, mas temos instituições independentes. Se o Brasil quiser alguma perspectiva de melhora nos próximos anos e décadas, precisa respeitar a lei, a partir do Ministério Público, das atividades da Polícia Federal desbaratando quadrilhas, crime organizado e corrupção em todos os níveis (empresarial, governamental), que estão na raiz da invasão de terras públicas, do desmatamento, do roubo de madeira. Então, independente do presidente, do governo e dos ministros, temos que observar que o Brasil já adquiriu certa estatura de órgãos independentes que realizam sua missão de acordo com o que reza a Constituição.

E dependemos muito da população. Devemos nos tornar muito mais rigorosos em exigir nossos direitos. Se houver movimentos no Congresso para mudar a legislação ambiental e enfraquecer a regulamentação que torna ilegal desmatamentos e queimadas, a população tem que reagir. Se os deputados não seguirem a vontade da maioria, o que é essencial em uma democracia, a população não só não deve reelegê-los daqui a quatro anos, mas também tem que cobrar. Isso é muito importante e não tem ideologia. Não é uma questão ideológica, de direita, de esquerda, de centro… É uma vontade muito manifesta da população brasileira que o Congresso tem que respeitar.

O ministro do Meio Ambiente lançou recentemente os números do desmatamento em 2017, mostrando um aumento de quase 14% em relação ao período anterior. Ele falou que quase todo aquele desmatamento era ilegal, sem autorização nem em áreas onde a derrubada é permitida por lei. Quer dizer, existe um clima de grande ilegalidade por trás dos desmatamentos e das queimadas, e é isso que realmente temos que combater.

O governo de transição tem mostrado ceticismo em relação às mudanças climáticas. Por exemplo, o futuro chanceler Ernesto Araújo acredita que o aquecimento global é um complô global marxista. O que o senhor pensa sobre esse cenário?

A preocupação existe, mas não é nova. Essas tendências de fato começaram com a luta política que a bancada ruralista do Congresso iniciou em 2010, 2011, quando fez várias moções para mudar o Código Florestal, alterado em 2012. É um movimento para enfraquecer controles de legislação ambiental.

A maior preocupação que tenho é o fato de que a lei, com o novo Código Florestal, perdoou a ilegalidade de todos os desmatamentos até julho de 2008. Se de tempos em tempos, de dez em dez anos, passar uma lei que torne legal um desmatamento originariamente feito de forma ilegal, isso transmite para o setor agressivo, conservador, atrasado da agropecuária a noção de que não existe legislação. Que eles podem invadir terra pública, que podem desmatar, que podem roubar madeira. Que um dia aquilo tudo será perdoado, as multas irão desaparecer, as terras serão legalizadas… Ou seja, é uma sinalização de que não é importante nem necessário acompanhar o Código Florestal de hoje, que ainda é rigoroso em muitos aspectos. Ninguém interpretou ainda qual a força dessa bancada no novo Congresso, mas ela tem sido historicamente muito forte no Brasil. É uma fraqueza da democracia, em um país em que as leis têm uma duração curta e são modificadas por interesses de poderosos política e economicamente.

É importante dizer que o setor moderno da agricultura e da pecuária já se coloca fortemente contra o avanço do desmatamento e das queimadas, porque já se deu conta de que isso é prejudicial para os próprios negócios. Não só no sentido de diminuir a atratividade dos produtos brasileiros em mercados ambientalmente rigorosos, como o europeu, mas também porque manter o máximo possível de biomas originais traz benéficos para a produção agrícola e pecuária.

A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) tem experimentos recentes que mostram um enorme aumento da produtividade nos sistemas chamados “integração lavoura-pecuária-floresta”. Quando se coloca um sombreamento, o gado produz muito mais leite e muito mais carne. Isso já era algo conhecido, mas agora finalmente começa a ser disseminado entre os pecuaristas e agricultores do setor moderno, que escuta a ciência e a tecnologia.

Infelizmente, temos um setor numericamente expressivo que ainda possui uma visão de expansão continuada da fronteira agrícola, sobretudo da pecuária. Estão muito mais preocupados com a posse da terra do que com uma visão empresarial de produtividade. É um pouco daquela mentalidade da colonização que ocorreu nos Estados Unidos, marcada pela força da violência, das armas, a expulsão das comunidades indígenas que eram as reais proprietárias da terra. Nesse cenário, quadrilhas criminosas tomam terras públicas e depois as vendem a pecuaristas.

O que ainda precisa mudar para impedir o desmatamento em áreas já protegidas?

Ainda temos na Amazônia algo em torno de 600 mil e 800 mil km2 de terras públicas. É importante dar uma destinação para essas áreas, com a criação de reservas protegidas e florestas nacionais, por exemplo. Caso contrário, elas se tornam alvos da grilagem, que também ocorre em áreas de proteção e reservas indígenas. A razão do sucesso da redução do desmatamento em mais de 70%, entre 2005 e 2014, é uma rigorosa política de controle, desbaratamento e desmembramento das quadrilhas organizadas responsáveis pelo roubo de madeira e pela grilagem em terras públicas. Acima de 70% dos desmatamentos são ilegais e muitos estão associados a organizações criminosas. Também precisamos dar mais ênfase na proteção das áreas já existentes, que correspondem a 50% da Amazônia brasileira, seja como áreas protegidas, reservas indígenas ou de desenvolvimento sustentável.

“Os ativos biológicos na Amazônia são muito superiores do que se substituíssem a floresta por pastagem para a pecuária, por grãos para a agricultura ou por extração de minérios.” POR CARLOS NOBRE

O World Resources Institute aponta que a agropecuária brasileira é responsável por 1% de todos gases de efeito estufa emitidos no mundo. Que fatores tornam essa prática tão danosa ao meio ambiente?

Esse cálculo é só da pecuária, não inclui o desmatamento. O boi, por exemplo, processa a gramínea no pré-estômago. As reações químicas de processamento da matéria orgânica geram metano e o boi arrota esse gás, o que representa a maior parte das emissões da pecuária. Existem dietas com suplementos alimentares que diminuem a produção de metano, mas não a elimina.

A partir de vários estudos, a Embrapa patenteou a “carne carbono neutro”. Você maneja a pastagem de maneira que ela absorva o carbono no solo. A gramínea cresce, as raízes também. Na estação seca as raízes morrem e aquele carbono permanece no solo. Segundo a Embrapa, no pasto super manejado há entre 2,6 a 3 cabeças de gados por hectare, enquanto a agregação de carbono ao solo é equivalente a emissão de metano de ao menos 2,6 cabeças. A ocupação média da pecuária brasileira hoje é de 1,3 cabeças de gado por hectare e no total temos 215, 216 milhões de cabeças em 1,8 milhão de km². O Ministério da Agricultura supõe que 10 milhões de pastagens já estejam mudando para esses sistemas. Se o comportamento do consumidor seguir nessa direção, poderemos ter uma pecuária muito mais produtiva e que emite muito menos.

A Embrapa calcula que, até 2025, seja possível aumentar a produção de proteína animal em 35% e, ao mesmo tempo, reduzir em 25% a área de pecuária no Brasil. Essa redução de 450 mil km² – uma cidade de São Paulo e meia – seria muito importante não só para a agropecuária, mas sobretudo para que o país cumpra a meta de restaurar 12 milhões de hectares de floresta [estabelecida no Acordo de Paris].

Qual é a ideia do seu projeto, chamado Terceira Via Amazônica?

Esse é um projeto que eu, o Ismael [irmão de Nobre, biólogo que integra a equipe de transição do presidente eleito] e outras pessoas estamos liderando. Pensando em um novo modelo de desenvolvimento para a Amazônia, seria uma economia de floresta em pé, na qual o valor maior são os produtos da biodiversidade. Pega o exemplo do açaí, um produto que há 20 anos não era nada e hoje já significa US$ 1,5 bilhão para a economia do bioma. Então, estamos propondo a Terceira Via Amazônica, ou Amazônia 4.0, número que faz referência a utilização das tecnologias modernas da quarta revolução industrial.

Como garantir que ocorra um desenvolvimento sustentável sem ameaçar nem degradar o meio ambiente?

Os ativos biológicos na Amazônia são muito superiores do que se substituíssem a floresta por pastagem para a pecuária, por grãos para a agricultura ou por extração de minérios. Mas, para isso, precisamos realmente fazer as novas tecnologias chegarem à Amazônia e adicionarem valor às cadeias produtivas. Eu dei o exemplo do açaí porque já é uma realidade, mas levantamos uma lista com mais de mil produtos com potencial, como a castanha, o guaraná, a andiroba, a copaíba, o pau-rosa. Nossa proposta também é muito preocupada com o bem-estar e a prosperidade das populações amazônicas. Não é como a mineração, em que apenas se tira o valor da Amazônia e o leva para outro lugar. Outro setor do nosso projeto é a alta tecnologia biológica. Queremos capacitar populações para que elas próprias façam o genoma das espécies que dominam, com base no conhecimento tradicional. Fariam o genoma de dezenas de milhares de espécies, e isso no futuro teria um enorme potencial econômico a partir dos recursos biológicos e genéticos.

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