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“E quando o novo coronavírus chegar às favelas do Brasil?” No início de março, esta pergunta permeava diversos debates sobre a covid-19 em meio aos primeiros casos confirmados no país. Fato é que o receio não demorou muito para se concretizar: semanas depois, moradores de algumas comunidades passaram a ter sintomas e foram diagnosticados com a doença.
Para o biólogo Atila Iamarino, há um agravante desta crise no Brasil, pois “não existe modelo de como o vírus se espalha pelas favelas”. Ademais das aglomerações em que vivem muitas famílias nas periferias, como seguir as recomendações básicas de higiene da Organização Mundial da Saúde (OMS) quando não se tem os itens necessários, como o acesso a água, sabão, álcool em gel e máscaras?
Já o impacto econômico e social é igualmente preocupante, uma vez que muitas pessoas ficaram desempregadas ou sem renda durante a quarentena, além daquelas que não têm opção de fazer home office e precisam pegar transporte público para trabalhar em regiões afastadas. Uma pesquisa do Data Favela/Instituto Locomotiva, divulgada em 24 de março, mostrou que, sem ações específicas, 86% dos moradores de favelas vão passar fome por causa do coronavírus.
“A situação é de ausência do estado, de falta de política pública. O pouco que tem sido feito pelo governo a nível nacional, estadual e municipal é ineficiente, demorado e burocrático. E aqui [em Paraisópolis] nós temos que criar nossa própria política pública”, afirma Gilson Rodrigues, líder comunitário e presidente da União dos Moradores e do Comércio de Paraisópolis, ONG que já existe há 35 anos em São Paulo.
Diante da omissão do poder público, as próprias ONGs e instituições locais iniciaram movimentos para conscientizar a população e tomar medidas com o objetivo de minimizar impactos sociais, econômicos e para a saúde neste período de isolamento social. Distribuição de cestas básicas, marmitas, máscaras, itens de higiene, entre outros produtos, estão entre os objetivos de campanhas criadas pelas entidades para enfrentar esta fase.
Um exemplo dessa mobilização nacional é o trabalho da Central Única das Favelas (Cufa), que atua há 20 anos nesses territórios. Segundo Geovana Borges, presidente estadual da organização, a maior necessidade neste momento é que chegue renda direta às favelas. Foi pensando nisso que a instituição lançou a campanha #CufaContraOVírus, que tem recebido doações para ajudar favelas nos 26 estados e no Distrito Federal. Outra ação específica é a Mães da Favela, que dará cestas básicas, além de vouchers de R$ 120, para mulheres com filhos que estão sem renda.
Para reunir e das visibilidade às inúmeras iniciativas criadas, o Instituto Marielle Franco e a organização Favela em Pauta lançaram o Mapa Corona nas Periferias, que reúne projetos de combate à doença nas comunidades de todo o país. Quer conhecer e colaborar? Clique aqui!
A Catraca Livre conversou com três representantes de favelas em São Paulo, Rio de Janeiro e Recife para entender o que tem sido feito pelas organizações locais e pelo poder público, além de abordar as dificuldades vividas neste período de isolamento social. Confira abaixo:
Paraisópolis: exemplo nacional no combate à pandemia
Segunda maior favela de São Paulo, com 100 mil residentes, Paraisópolis tornou-se referência de ações para o enfrentamento da crise. A evidente desassistência do governo para administrar a situação fez com que a comunidade da zona sul da capital paulista agisse o quanto antes. Hoje, já há o registro de 47 casos confirmados de covid-19 na região. “Estamos criando 10 iniciativas que têm sido replicadas em outras 361 favelas a nível Brasil para formar uma grande rede de solidariedade entre os moradores”, afirma o líder comunitário Gilson Rodrigues.
Segundo o representante, a favela transformou 420 moradores voluntários em presidentes de rua, sendo que cada um deles virou responsável por monitorar cerca de 50 casas. “Esse presidente tem algumas funções, como identificar um possível vice-presidente, que possa substituí-lo caso haja necessidade, conscientizar as pessoas que vivem na região para ficarem dentro de casa e acionar a ambulância quando preciso”, afirma ele, que também é coordenador nacional do G10 das Favelas, bloco de líderes e empreendedores de impacto social.
Paraisópolis mantém três ambulâncias, sendo uma delas UTI, com dois médicos, três enfermeiros e dois socorristas, que atuam 24 horas por dia à disposição dos moradores. “Após acionada, a ambulância vai até a casa da pessoa e, se necessário, faz a remoção até a AMA ou, se o estado é grave, leva o paciente até o Hospital Campo Limpo”, completa.
De acordo com Rodrigues, a maior dificuldade que os líderes comunitários enfrentam para agir é conscientizar a população a de fato ficar em casa e a aderir a cuidados básicos de higiene. Em primeiro lugar, isso acontece por causa da comunicação da televisão e do governo federal, que não inclui as especificidades das comunidades. “Aqui em Paraisópolis, e na maioria das favelas, nem água tem 24 horas. Muitos também não têm acesso a saneamento básico”, relata.
O segundo entrave, histórico, é a falta de políticas públicas específicas para as comunidades. “A gente se sente abandonado de alguma forma. É como se 13 milhões de brasileiros que moram nas favelas não existissem”, ressalta.
Em meio ao abandono, outro fator preocupa as lideranças, como conta Gilson. “A população ainda está desacreditada que este é um problema real e que vai chegar aqui. Tem gente ainda achando que é uma doença para rico, que só quem viajou para fora do país vai pegar. Mas a realidade é que já chegou, temos casos e será bastante difícil.”
Além das ações dos presidentes de rua e das ambulâncias, Paraisópolis criou duas casas de acolhimento, sediadas em escolas estaduais, as quais vão abrigar 260 moradores durante a quarentena. A prioridade é acolher pessoas que tiveram teste positivo para a doença e que tenham idosos ou doentes crônicos na família.
Outra iniciativa que está sendo organizada é a distribuição de marmitas e cestas básicas. O projeto é liderado pelo grupo Mãos de Maria, que reúne mulheres empreendedoras da comunidade formadas na área de gastronomia.
Também há o programa Adote uma Diarista, que apoia profissionais que foram demitidas ou ficaram sem renda. A ideia é contribuir com R$ 300 mensais, cesta básica e kits de higiene durante três meses. “Nós temos 1.032 diaristas inscritas, mas só temos 150 adotadas de forma completa, as demais estão recebendo apenas os produtos.”
Na área do comércio, organizações se uniram para fortalecer estabelecimentos locais, que correm risco de falir. A ideia é que os produtos doados à favela sejam comprados nesses locais, pois ainda facilita a logística. Por meio do projeto Costurando Sonhos, a comunidade vai produzir 1 milhão de máscaras de pano. O movimento é chamado de “o maior home office das costureiras de favelas do Brasil”.
Os moradores que precisarem de atendimento médico ou psicológico contam com o projeto de telemedicina, que realiza consultas por internet ou telefone. “Também iniciamos um projeto de formação de 240 socorristas. A capacitação foi feita por bombeiros civis e a ideia é que eles ajudem a população e também, na eventualidade de uma tragédia, com remoção de corpos, por exemplo”, completa.
Na falta do poder público, a sociedade civil no geral tem se mobilizado por meio de campanhas na internet. O líder comunitário diz que há duas boas formas de apoiar as comunidades neste momento. A primeira é cobrar do governo que se faça algo em caráter de urgência; a segunda, colaborar com as vaquinhas e doações a essas regiões. Confira neste link uma lista de iniciativas para ajudar.
Favela do Totó: a comunicação de dentro para fora
“Quanto é que vale a nossa vida? A gente é refém, não vítima, de todo e qualquer tipo de poder. Eu vivo as consequências das decisões do presidente, mas também vivo as consequências da patroa da minha mãe, empregada doméstica, que faz pressão psicológica dizendo a ela que tem que voltar a trabalhar neste mês”, afirma a cineasta periférica Yane Mendes, moradora da Favela do Totó, zona oeste do Recife, em Pernambuco. No bairro, ainda há dificuldades em contabilizar quantas pessoas têm ou tiveram a covid-19, pois muitas permanecem em casa achando que estão apenas com uma gripe. Dados oficiais do estado mostram três casos confirmados na região.
Com o poder da comunicação, a ativista luta diariamente para deixar registrado na história que quem salvou as favelas neste momento de pandemia foram os próprios moradores a partir de movimentos e campanhas, e não a poder público. “Não são os R$ 600 [auxílio emergencial do governo] que salvaram ninguém. Desta vez, não vamos ser feitos de refém e ficar calados. Quando os casos chegarem em grandes quantidades nas periferias, vamos deixar registrado na história, seja escrita, filmada ou contada, que a gente não se matou, a gente foi colocado para ser morto”, enfatiza.
O engajamento da cineasta no Totó e em outras comunidades não surgiu com a crise do novo coronavírus, mas sim de anos de incômodos por causa de toda a desigualdade vivida e vista por ela na cidade. Com a chegada da doença, a Rede Tumulto, que é um dos grupos com o qual colabora, está atuando em duas ações: uma de comunicação, que consiste em informar a periferia com conteúdos produzidos de “dentro pra fora” e deixar registrada a verdadeira história deste enfrentamento, e outra de arrecadação de comida e produtos de higiene.
A mobilização tem um trabalho interno, offline e online. Como a internet não atinge a maioria da população, o grupo também faz as ações físicas, na qual espalha cartazes com comunicados simples e diretos para que as pessoas se previnam da covid-19 e se sintam provocadas.
Mas os projetos não se limitam à favela onde nasceu. “A gente tem uma atuação em várias comunidades por ter uma rede grande com coletivos de periferias e pessoas atuantes que fazem a diferença, para além da pandemia, dentro de seus territórios”, ressalta. Segundo ela, a recepção dos cartazes de conscientização na Favela do Totó foi bastante positiva. “Moradores de diferentes comunidades pediram pra gente espalhar essas mensagens por outros lugares.”
Já a campanha “Enche Panela” nasceu a partir de um problema bastante recorrente nas favelas: o número de pessoas em situação de fome não para de crescer após o vírus. A ação está arrecadando doações de alimentos e kits de higiene, e tem abrangência em 12 territórios, com 85 famílias atendidas. A ideia é ajudar ainda mais residentes dessas localidades, principalmente mulheres com filhos, além de levar informação clara e objetiva sobre a doença.
“O ‘Enche Panela’ traz a provocação da necessidade da movimentação individual de cada um de nós pelas vidas de outras pessoas, tendo em vista a negligência do governo, que coloca em situação de mais vulnerabilidade muitas famílias de periferia”, diz. Para colaborar, clique aqui.
Segundo a cineasta, a ideia não é apenas arrecadar dinheiro para a compra de comida e produtos de higiene. “A gente entende que essa rede precisa de informação, de ampliação de construção coletiva, que sempre existiu nas favelas. E, também, buscar conteúdo que venha desconstruir a narrativa de que sempre as pessoas são vulneráveis. O objetivo é nos colocar em um lugar de autonomia, de quem foi inserido nessa situação por causa do sistema capitalista e racista.”
Para Yane, as maiores dificuldades que as favelas vivem neste momento são as limitações impostas historicamente a elas. “A hashtag #FicaEmCasa faz uma filtragem de classe enorme. Que casa é essa? Que cômodo é esse? Que conforto é esse que se tem? A gente não tem acesso a se prevenir”, ressalta.
Agora, o desafio é não ceder à pressão do sistema, que tenta criminalizar e culpabilizar as periferias, mais uma vez. “Jornais filmam aglomerações em portas de lotéricas e bancos, sendo que o problema maior é que a informação não chega da forma que deveria a essas regiões. O desespero para conseguir o auxílio emergencial faz com que as famílias fiquem em filas. É a única esperança de que algo pode melhorar.”
Por isso a comunicadora e os demais voluntários se uniram para criar métodos de prevenção dentro da realidade das favelas. “Se a pessoa precisa sair para trabalhar, então, o que ela deve fazer minimamente para se prevenir? Se mora um monte de gente dentro de uma casa, como minimizar os riscos? Se a família não tem acesso a água, como ajudar?”, debate. “Mais uma vez a gente está sendo obrigado a readaptar nossos hábitos, como sempre ocorre.”
A cineasta reflete por que é difícil para os moradores das favelas terem medo da chegada do novo coronavírus. De acordo com ela, não é por falta de entendimento da gravidade, mas porque eles convivem com a violência a todo tempo. “Agora, estamos sendo atacados por um inimigo que a gente não vê, mas os inimigos visíveis não deram uma pausa. A polícia continua batendo nas periferias da maneira que sempre bateu e continuamos vivendo essa situação de caos e abandono. O coronavírus é só o agravante.”
Mesmo com todas as dificuldades históricas e certa resistência, ela conta que nunca viu tantos rostos apreensivos nas comunidades. “As pessoas estão com medo de não ter o dinheiro para o aluguel, de não ter a fralda da criança, de precisar do SUS, sabendo de antemão que a periferia tem mais mortes por causa da doença”, finaliza.
Complexo da Maré: rede de solidariedade em luta por 16 favelas
Os 140 mil moradores das 16 favelas que compõem o Complexo da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro, não estão totalmente desamparados, apesar da abstenção do poder público. Isso porque as ameaças da chegada do novo coronavírus à comunidade trouxeram consigo a união da sociedade civil. Carros de som, mensagens em faixas, vídeos disseminados pelas redes sociais foram divulgados aos residentes para alertar sobre os riscos da pandemia, que, no início, parecia algo distante da realidade local.
As favelas do Rio têm 153 casos confirmados e 24 mortes em decorrência do novo coronavírus. Apenas no Complexo da Maré, são 12 pessoas diagnosticadas com a doença, com 4 óbitos.
Segundo Eliana Sousa Silva, diretora da Redes da Maré e coordenadora da campanha “Maré diz não ao coronavírus”, a organização em que atua viu, desde o início, a necessidade de pensar ações específicas para minimizar os impactos da doença. A ONG realiza dezenas de projetos que têm como foco melhorar a qualidade de vida dos moradores das favelas, em áreas como educação, cultura, artes, segurança pública, memória, empreendedorismo, formação profissional, gênero e desenvolvimento territorial, entre outros.
Neste primeiro mês de isolamento social, a instituição realizou inúmeras iniciativas, como a distribuição de mais de 7.000 cestas de básicas e kits de higiene, totalizando 323 toneladas de alimentos, e a doação de 6.300 quentinhas para moradores em situação de rua e usuários de crack da Maré (200 refeições diárias) e para os moradores de rua do projeto “Consultório de rua”. Além disso, também arrecadou e distribuiu 4.800 coelhos de chocolate na Páscoa e 7.500 frascos de álcool gel.
Ainda neste período, os principais focos foram as campanhas de comunicação voltadas aos moradores, com o intuito de usar uma linguagem e um enfoque que se aproximem mais da realidade deles. A campanha “Se liga no corona”, por exemplo, foi feita em parceria com a FioCruz, com materiais gráficos, impressos e online, de prevenção, matérias no jornal Maré de Notícias, radionovelas, spots para carros de som e rádios comunitárias, podcast, entre outros.
Também há acolhimento online da equipe social projeto “Maré de Direitos”, com orientações sobre acesso a direitos neste período da crise da saúde e, também, a articulação para atendimentos emergenciais. Uma última ação é o “De Olho no Corona”, um canal de contato via WhatsApp para orientações, esclarecimentos e denúncias de dificuldades de acesso nos equipamentos de saúde na Maré.
No próximo mês, a ideia é seguir com as ações iniciais e ampliar, também, para novas iniciativas. Elas incluem a produção de máscaras por costureiras das favelas da Maré para distribuição à população local, um edital público com bolsas para projetos locais de coletivos de arte, cultura e comunicação que atuam na Maré e a arrecadação de materiais de EPIs para distribuição aos profissionais que atuam nas sete unidades básicas de saúde e uma Unidade de Pronto Atendimento da Maré.
Assim como o líder de Paraisópolis, Eliana denuncia a histórica vulnerabilidade das favelas e periferias do Brasil, fruto da negação de direitos básicos a estes territórios. Um exemplo é o atendimento à saúde.
“Quando pensamos em prevenção, as Unidades de Atenção Básica à Saúde têm um papel fundamental. São esses equipamentos, considerados porta de entrada para o cuidado em saúde, que têm o contato cotidiano com a população e que, por isso, podem atuar concretamente na circulação de informações e no cuidado”, pontua. Esses locais são de extrema importância para conter a propagação do vírus e, na atual crise, podem ser um ponto de apoio importante para quem vive nas favelas e periferias.
Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são também equipamentos importantes nesse período, pois muitas pessoas poderão sofrer as consequências desta crise apresentando quadros de agravamento da saúde mental, com necessidade de apoio e cuidado.
Para a diretora da ONG, o que vemos hoje, no município do Rio de Janeiro, é um cenário de precarização e de desinvestimento por parte do Estado, sobretudo nos serviços de atenção básica. “Em 2017, a cidade contava com mais de 70% de cobertura de unidades básicas de saúde, porém, desde então, tais serviços estão experimentando sucessivos cortes. Ao longo de 2019, as equipes de saúde da família tiveram muitos atrasos salariais, além de demissões e faltas de insumos básicos para o funcionamento adequado, culminando no quadro.”
A campanha “Maré diz não ao coronavírus” é uma iniciativa da Redes da Maré, pensada para um período de três meses – entre março e maio -, que acontece e se viabiliza a partir da parceria com algumas instituições e pessoas físicas, como Fiocruz, 342 Artes, o movimento Rio Contra o Corona, Grupo Ação Impacto, Brazil Foundation, Instituto Unibanco, Itaú Social, Grupo Luxor, Urbanistas contra o corona e Welight, e organizações que atuam na região, como as Associações de Moradores, Coletivo Maré Vive, Luta pela Paz, Observatório de Favelas, Uerê, entre outras, além de doadores individuais.
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