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A quem serve a transposição das águas do São Francisco?

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por Aziz Ab’Saber, especial para a Envolverde – 

O professor Aziz Ab’Saber, falecido em 2012,  escreveu em 2007, especial para a Envolverde,  um artigo sobre a transposição do Rio São Francisco, um texto que ainda hoje se mantém atual por sua percepção de como age a tecnocracia nas decisões que afetam a natureza e a vida de comunidades.

É compreensível que em um país de dimensões tão grandiosas, no contexto da tropicalidade, surjam muitas ideias e propostas incompletas para atenuar ou procurar resolver problemas de regiões críticas. Entretanto, é impossível tolerar propostas demagógicas de pseudotécnicos não preparados para prever os múltiplos impactos sociais, econômicos e ecológicos de projetos teimosamente enfatizados.

Nesse sentido, bons projetos são todos aqueles que possam atender às expectativas de todas as classes sociais regionais, de modo equilibrado e justo, longe de favorecer apenas alguns especuladores contumazes. Pessoalmente, estou cansado de ouvir propostas ocasionais, mal pensadas, dirigidas a altas lideranças governamentais. Nas discussões que ora se travam sobre a questão da transposição de águas do São Francisco para o setor norte do Nordeste Seco, existem alguns argumentos tão fantasiosos e mentirosos que merecem ser corrigidos em primeiro lugar. Referimo-nos ao fato de que a transposição das águas resolveria os grandes problemas sociais existentes na região semi-árida do Brasil.

O Nordeste Seco, delimitado pelo espaço até onde se estendem as caatingas e os rios intermitentes, sazonários e exoreicos (que chegam ao mar), abrange um espaço fisiográfico socioambiental da ordem de 750.000 quilômetros quadrados, enquanto a área que pretensamente receberá grandes benefícios abrange dois projetos lineares que somam apenas alguns milhares de quilômetros nas bacias do rio Jaguaribe (Ceará) e Piranhas/Açu, no Rio Grande do Norte. Portanto, dizer que o projeto de transposição de águas do São Francisco para além Araripe vai resolver problemas do espaço total do semi-árido brasileiro não passa de uma distorção falaciosa.

Um problema essencial na discussão das questões envolvidas no projeto de transposição de águas do São Francisco para os rios do Ceará e Rio Grande do Norte diz respeito ao equilíbrio que deveria ser mantido entre as águas que seriam obrigatórias para as importantíssimas hidrelétricas já implantadas no médio/baixo vale do rio – Paulo Afonso, Itaparica, Xingó.

Devendo ser registrado que as barragens ali implantadas são fatos pontuais, mas a energia ali produzida, e transmitida para todo o Nordeste, constitui um tipo de planejamento da mais alta relevância para o espaço total da região. De forma que o novo projeto não pode, em hipótese alguma, prejudicar o mais antigo, que reconhecidamente é de uma importância areolar.

Segue-se na ordem dos tratamentos exigidos pela ideia de transpor águas do São Francisco para além Araripe a questão essencial a ser feita para políticos, técnicos acoplados e demagogos: a quem vai servir a transposição das águas?

Os “vazanteiros” que fazem horticultura no leito dos rios que “cortam” – que perdem fluxo durante o ano-serão os primeiros a ser totalmente prejudicados. Mas os técnicos insensíveis dirão com enfado: “A cultura de vazante já era”.

Sem ao menos dar qualquer prioridade para a realocação dos heróis que abastecem as feiras dos sertões. A eles se deve conceder a prioridade maior em relação aos espaços irrigáveis que viessem a ser identificados e implantados. De imediato, porém, serão os fazendeiros pecuaristas da beira alta e colinas sertanejas que terão água disponível para o gado, nos cinco ou seis meses que os rios da região não correm.

Um projeto inteligente e viável sobre transposição de águas, captação e utilização de águas da estação chuvosa e multiplicação de poços ou cisternas tem que envolver obrigatoriamente conhecimento sobre a dinâmica climática regional do Nordeste. No caso de projetos de transposição de águas, há de ter consciência que o período de maior necessidade será aquele que os rios sertanejos intermitentes perdem correnteza por cinco a sete meses.

Trata-se, porém, do mesmo período que o rio São Francisco torna-se menos volumoso e mais esquálido. Entretanto, é nesta época do ano que haverá maior necessidade de reservas do mesmo para hidrelétricas regionais.

A afoiteza com que se está pressionando o governo para se conceder grandes verbas para início das obras de transposição das águas do São Francisco terá conseqüências imediatas para os especuladores de todos os naipes. Existindo dinheiro – em uma época de escassez generalizada para projetos necessários e de valor certo -, todos julgam que deve ser democrática a oferta de serviços, se possível bem rentosos. Será assim, repetindo fatos do passado, que acontecerá a disputa pelos R$ 2 bilhões pretendidos para o começo das obras.

*Aziz Ab´Sáber , falecido em 2012, foi geógrafo, professor e escritor, uma das figuras mais proeminentes do ambientalismo brasileiro. Professor-Doutor em Geografia Física (USP), ganhador do prêmio Ciência e Meio Ambiente da Unesco, tem mais de 300 trabalhos publicados sobre a geografia brasileira, também foi presidente da SBPC e do Condephaat e diretor do Instituto de Geografia da USP. (#Envolverde)

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