[ad_1]
Dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) mostram que sete a cada 100 indígenas Xavante infectados pela covid-19 morrem em decorrência da doença no estado de Mato Grosso. A taxa de letalidade do novo coronavírus entre os Xavante está em 7,09%, mais do que o dobro do registrado na população não indígena, que é de 3,12%, segundo levantamento realizado pela Operação Amazônia Nativa (OPAN), até o dia 20 de agosto.
O número elevado da taxa de letalidade entre os Xavante escancarou o despreparo dos serviços de saúde da região, explica a pesquisadora Ana Lúcia Pontes, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz e integrante do grupo de trabalho de saúde indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). A especialista destaca que a resposta tardia das políticas emergenciais e a grande presença de comorbidades ampliaram o impacto da doença entre os povos. “No caso dos Xavante, notamos que as medidas preventivas não tiveram grande adesão. O estado não considerou o problema e o impacto dele.”
A pesquisadora observa que medidas de prevenção poderiam ter reduzido o número de mortes. “A transmissão é muito rápida e não houve o isolamento social necessário. Em casos de covid-19, o que faz a diferença para a questão da letalidade é a assistência médico-hospitalar e o diagnóstico precoce da baixa de oxigênio no sangue, com o suporte respiratório, que depende do atendimento em hospital com respirador. Em Barra do Garças, município de referência, não tem a estrutura necessária. Por outro lado, nos últimos anos, o povo Xavante registrou uma mudança no perfil nutricional e alimentar, com uma maior prevalência de obesidade e doenças crônicas, como diabetes e hipertensão, que são agravantes”, analisa Ana Lúcia.
A covid-19 também se mostra mais severa entre os povos do Parque Indígena do Xingu. A taxa de letalidade entre os xinguanos está em 4,55%, já entre a população brasileira não indígena o número cai para 3,23%. Até o dia 31 de agosto, foram contabilizados 281 casos confirmados e 12 óbitos, de acordo com boletim do DSEI Xingu.
De acordo com Douglas Rodrigues, professor do Departamento de Medicina Preventiva da da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que trabalha com povos do Xingu, existiram ao menos quatro portas de entrada da doença nos territórios, todas na região do Alto Xingu. Segundo o especialista, houve ao menos três mortes de indígenas não aldeados que não foram contabilizadas pela Sesai, sendo assim, o número chegou a 15 óbitos.
A criação de vias de acesso, a circulação de pessoas entre aldeias, bem como dentro e fora das cidades, podem ter sido causas do crescimento da doença entre os alto-xinguanos, segundo o professor.
“A covid-19 entrou fortemente no Alto Xingu, principalmente em seis das 16 etnias, que são os Kamaiurá, Yawalapiti, os Kuikuro, os Kalapalo, Nafukwa e Matipu. Nas outras regiões, as pessoas têm ficado dentro da área. Há dois anos, foi aberta uma estrada que liga a região do Alto Xingu com o município de Querência, e assim surgiram muitos povoados. Essa estrada escancara uma porta de entrada enorme para o Alto Xingu. Foi por ali que a covid-19 entrou, inicialmente entre os Kalapalo. Não havia testes e trataram como se fosse uma gripe, então a doença foi se espalhando. E temos a informação de uma terceira porta de entrada entre os Kamaiurá: um caso de covid-19 em uma Casai em Gaúcha do Norte. Houve uma transmissão ali, as pessoas ficaram com medo e fugiram para a aldeia”.
O professor da Unifesp também destaca que as Unidades de Atenção Primária Indígena (UAPIs) criadas durante a pandemia não são suficientes para evitar os óbitos e a disseminação de casos. “Todas as terras do Xingu têm as UAPIs, mas isso tudo é paliativo, o que ajuda mesmo é não ter muitos casos. Foi muito difícil fazer o isolamento no Alto Xingu, o que não significa que não deve ser feito. Essa região de onde vêm os casos tem cerca de 800 pessoas. São basicamente duas aldeias do Polo Leonardo, então é bastante alta a taxa de infecção, em torno de 11,4%”, alerta.
Mato Grosso em estado de alerta
As centenas de mortes provocadas pelo novo coronavírus entre os indígenas de Mato Grosso seguem gerando repercussão, semana após semana. No estado, 116 indígenas foram vitimados pela covid-19 em 17 diferentes povos, conforme mostrou a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), em boletim divulgado dia 28 de agosto. Xavante, Kurã Bakairi, Boe Bororo e Cinta-Larga estão entre as etnias com maior número de óbitos no estado, segundo o mesmo boletim.
O número não para de crescer e chegou à marca dos 756 óbitos e dos 28.815 casos confirmados de covid-19 entre os indígenas do Brasil, de acordo com dados divulgados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), apurados pelo Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena, do último dia 30 de agosto.
Os indígenas do povo Boe Bororo também estão entre os mais atingidos pela covid-19. Com aldeias localizadas nos municípios de General Carneiro, Primavera do Leste e Poxoréo, os Boe Bororo contabilizam quatro óbitos, até o dia 28 de agosto, de acordo com dados da Coiab. As mortes ocorreram entre idosos da aldeia Meruri, localizada no município de General Carneiro, cidade a 450 km de Cuiabá.
A pandemia do coronavírus também expôs a importância da medicina indígena, dos conhecimentos dos pajés e da alimentação tradicional não industrializada, cultivada nas roças. Eloenia Ararua, indígena do povo Boe Bororo e assessora da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt), ressalta que não houve esforço suficiente do poder público no início da pandemia, mas lembra a importância da medicina indígena.
“A atenção dos órgãos governamentais foi tardia, o governo e o estado só agiram a partir do momento que estourou o problema. Faltou planejamento e diálogo do estado com os órgãos que nos atendem, tanto da Funai, quanto do DSEI Cuiabá. Observei que estavam desalinhados e o município também esteve muito ausente nesse processo. Conseguimos controlar a doença por conta dos nossos medicamentos tradicionais e da nossa espiritualidade. Todo povo tem seu conhecimento tradicional e devemos usa-lo. Aqui no Cerrado nós usamos muito a quina, o boldo e o melão-de-são-caetano”.
A representante da Fepoimt conta que a ausência de barreiras sanitárias prejudicou os indígenas. “Fizemos a prevenção na aldeia, porém as portas de entrada para a doença são inúmeras e estamos na rota do agronegócio. A BR 070 corta nosso território, então a nossa vulnerabilidade era muito grande e era quase inevitável a doença não entrar. Ainda assim, o uso da máscara foi de suma importância pra gente conter a transmissão”.
A disseminação do novo coronavírus entre os povos originários vem sendo marcada por verdadeiros embates entre as organizações indígenas, indigenistas e o governo federal. As instituições não contabilizam os óbitos e casos de covid-19 entre os não aldeados. Além da falta de transparência na divulgação de dados, os órgãos públicos falharam ao não apresentar medidas de proteção aos indígenas no início da pandemia.
Apresentado em maio, o Projeto de Lei (PL) 1142/2020 – de autoria da deputada federal Rosa Neide, junto a Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas – criou o Plano Emergencial para Enfrentamento à covid-19 nos territórios indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais. O texto sancionado no fim de julho sofreu vetos do presidente Jair Bolsonaro. Somente após forte pressão da sociedade civil e movimentos sociais, 16 dos 22 dispositivos rejeitados pelo chefe do executivo foram restabelecidos pelo Congresso Nacional. Com isso, a lei voltou a garantir aos indígenas a oferta de água potável, materiais de higiene e leitos hospitalares.
Apesar do tempo perdido, ainda há muito trabalho a ser feito, analisa a pesquisadora Ana Lúcia Pontes. “O enfrentamento à covid deve ser estruturado de maneira consistente. A pandemia ainda está longe de encerrar e o caso do Brasil, particularmente, é complexo, porque estamos vendo a prorrogação do período do pico de mortes. A resposta à doença deve dar conta das múltiplas dimensões, desde o apoio às comunidades indígenas no seu isolamento voluntário, com segurança alimentar, água potável, insumos de higiene, orientações para as medidas preventivas, até o controle da entrada e saída de pessoas dos territórios. E mais, é estratégia fundamental a desintrusão dos invasores de terras, para diminuir a disseminação do vírus. Há tempo e ainda é urgente”, aponta Ana.
Ao encontro da pesquisadora da Fiocruz, o indígena Fernando Dywuru confirma um dos modos de disseminação da doença entre os Cinta-Larga: a entrada e saída de madeireiros e garimpeiros. Em menos de um mês, ocorreram 11 óbitos pelo novo coronavírus, sendo sete em Mato Grosso e quatro em Rondônia. “A Funai e o Ibama tinham que tirar todos os invasores das reservas indígenas Cinta-Larga, os anciões estão morrendo, nós estamos pedindo socorro para que venham aqui na região. Muitos Cinta-Larga, da Terra Indígena de Aripuanã, foram contaminados pelos madeireiros e pelos garimpeiros. Nós, lideranças, ficamos desesperados, correndo para todo lado”, critica o indígena pertencente ao povo Rikbaktsa, que é casado com uma Cinta-Larga.
Além da presença de invasores, ocorrem atividades de pastores e igrejas evangélicas, com cultos e reuniões frequentes nas aldeias e fora delas, como aponta relatório do antropólogo João Dal Poz, com informações sobre óbitos por covid-19 colhidas pela indigenista, Inês Hargreaves.
Os especialistas recomendam diretrizes a serem adotadas com urgência, a fim de salvar vidas e evitar o agravamento ainda maior da pandemia entre os Cinta-Larga, entre elas estão a contratação de mais médicos, enfermeiros, agentes de saúde e outros profissionais para o atendimento integral, com insumos e medicamentos adequados. As medidas incluem, ainda, a ampla testagem da covid-19 em todas as aldeias, em profissionais e indígenas e a organização de alternativas para isolamento e tratamento dos doentes no interior das terras indígenas, bem como o aumento da capacidade de hospitais de referência nos municípios próximos. O acesso à água potável, ao saneamento básico e a segurança alimentar nas aldeias também integram o rol de providências necessárias.
A Operação Amazônia Nativa (OPAN) é a primeira organização indigenista fundada no Brasil, em 1969. Há 50 anos atua pelo fortalecimento do protagonismo indígena no cenário regional, valorizando sua cultura, seus modos de organização social através da qualificação das práticas de gestão de seus territórios e recursos naturais, com autonomia e de forma sustentável.
[ad_2]
Fonte