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‘Invasores não estão de quarentena’, diz indígena

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Enquanto a orientação em todo o país é de isolamento social, a situação dos povos indígenas torna-se ainda mais delicada: além de enfrentarem sozinhas os impactos do novo coronavírus, as aldeias têm vivido as ameaças constantes dos invasores de terra, que não estão de quarentena. A chegada da doença às comunidades, levada por garimpeiros e madeireiros que atuam ilegalmente nas regiões, pode causar uma tragédia de grandes proporções se medidas não forem tomadas emergencialmente.

“Nos últimos meses, milhares de hectares de terras foram griladas e derrubadas. Essas pessoas não entraram em quarentena e estão se aproveitando desse momento de fragilidade dos governos, que já não têm tanta preocupação em combater esse tipo de crime. Infelizmente, nós estamos sofrendo muito com isso”, afirma à Catraca Livre o engenheiro agrônomo Joel Anastacio, da etnia Kaingang, da terra indígena de Mangueirinha, no Paraná.

Crédito: Rodolpho Reis / iStockDança na tribo indígena Dessana, no Amazonas

Dados oficiais da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) mostram que já são 27 indígenas diagnosticados com a covid-19, com três mortes no total, além de 28 casos suspeitos. Dois óbitos ocorreram no Alto Rio Solimões, no Amazonas: o de uma mulher do povo Kokama, 44 anos, e um ancião Tikuna, 78 anos. O terceiro foi de um adolescente de 15 anos da etnia Yanomami, que vivia em Roraima. No entanto, este número pode ser maior devido à subnotificação e falta de testes.

O descaso do governo federal com os povos indígenas fez com que eles se organizassem para impedir que a doença entre nas aldeias. Para Joel, a melhor forma de promover a segurança dos territórios é manter os indígenas dentro deles, sem permitir a entrada de pessoas de fora das tribos. “De alguma forma, eles precisam de acesso a serviços essenciais, mas com todo cuidado. É necessário haver políticas públicas voltadas à questão indígena, pois o sistema cultural e de convívio dos territórios é diferente”, explica.

Invasões de territórios

A situação das invasões de terras indígenas tende a se agravar em meio à crise. Na última terça-feira, 14 de abril, o ministro Ricardo Salles exonerou o diretor de Proteção Ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Olivaldi Azevedo. A demissão foi publicada no Diário Oficial da União, dois dias depois de uma reportagem do Fantástico, da Globo, mostrar uma megaoperação da instituição para retirar madeireiros e garimpeiros ilegais de terras indígenas no sul do Pará.

A operação tinha como objetivo proteger os cerca de 1.700 indígenas, que moram em três territórios da região, do contágio pelo novo coronavírus. As invasões de comunidades aumentaram desde o início da pandemia. Dados revelam que os alertas de desmatamento na Amazônia cresceram 29,9% em março deste ano, em comparação com o mesmo período do ano passado. “Além de se preocupar com a questão da doença, os indígenas também têm que se preocupar com defender seus territórios. E isso ninguém vê, ninguém percebe”, reflete o engenheiro agrônomo.

De acordo com o coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Antônio Eduardo Oliveira, os povos indígenas se isolaram, assim como parte da população brasileira, mas os pistoleiros, invasores de territórios, madeireiros e garimpeiros não estão dentro de suas casas. “Eles continuam invadindo e provocando conflitos nas comunidades. Registramos invasões no território Karipuna, em Rondônia, no território Yanomami, além de terras no sul da Bahia, no norte de Minas Gerais, e também no Maranhão (território Araribóia, do povo Guajajara)”, relata.

Saúde indígena

O coordenador do Cimi reitera que, desde 2016, o atendimento à saúde dos povos indígenas vem sendo desestruturado. “Em 2019, a situação piorou pelo fato de serem desestruturadas as equipes multidisciplinares que faziam o acompanhamento às comunidades”, explica.

“Com a retirada dos médicos cubanos, essas equipes foram desfalcadas e a reposição não ocorreu. Então, os indígenas tiveram que sair das suas aldeias para buscar o atendimento nas cidades, o que na maioria das vezes era negado”, completa Oliveira.

Por isso, quando chegaram as primeiras informações de casos de coronavírus no Brasil, o Conselho Indigenista Missionário ficou bastante preocupado. “Há uma preocupação de que se o vírus de fato chegar nas aldeias vai ser um verdadeiro caos”, pontua.

Joel Anastacio reafirma o quanto a questão da saúde pública para os indígenas é frágil, com inúmeras falhas. Com base em sua realidade, no Paraná, ele diz que há poucas informações levadas para os territórios a respeito da gravidade da covid-19 e o quanto é necessário se proteger dentro das aldeias.

“Vivo atualmente a menos de 20 km da terra indígena e meus parentes estão todos lá. Eu tive que ficar nesse momento na cidade para não levar risco para eles dentro do território. Mas algumas pessoas não têm essa preocupação sobre o perigo do vírus”, conta o engenheiro, que trabalha fora da aldeia, mas com projetos voltados a sua comunidade e também a outras comunidades do município.

Crédito: Luis Miguel ModinoAntônio Eduardo Oliveira, coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi)

Medidas do governo

Com a chegada do novo coronavírus ao Brasil, os povos indígenas logo fizeram reivindicações junto ao governo federal, que não correspondeu e permaneceu sem tomar nenhuma medida no sentido da prevenção ou do apoio às comunidades para que o vírus não as atingisse. “Neste primeiro momento, houve uma negligência do governo por parte da Sesai, da Funai, do Ministério da Saúde e do Ministério da Justiça com relação à proteção aos territórios”, denuncia o coordenador do Cimi.

Antônio Eduardo acrescenta que as primeiras medidas da Sesai e da Funai vieram apenas após relatos de casos do novo coronavírus entre indígenas. Mesmo assim, eram somente explicações de como os povos deveriam proceder. “Medidas no sentido da prevenção ficaram muito no papel.” Segundo ele, neste momento, eles já estavam com seus territórios bloqueados e fazendo campanhas para coleta de remédios e alimentos.

“A melhor forma de prevenir era no sentido de esclarecer a doença e ao mesmo tempo reequipar as equipes multidisciplinares, com recursos humanos e econômicos, e equipamentos. Isso infelizmente ainda não se deu. As equipes estão totalmente desprovidas de materiais, como máscaras, luvas, remédios e materiais de limpeza. Ainda existe uma desassistência às comunidades neste sentido”, finaliza.

Para Joel Nastacio, essa luta não será fácil. “Em todo território brasileiro, há um esforço grande por parte das lideranças para ver se os governantes tomam alguma atitude em relação à pandemia. Acredito que teremos muitos prejuízos por causa da falta de políticas públicas voltadas ao sistema das comunidades. Mas esperamos e acreditamos nas forças e nas nossas crenças em meio a tudo isso”, reflete.



Resposta dos povos indígenas

Diante da desassistência, os indígenas passaram a tomar providências para impedir a chegada de não-indígenas dentro das aldeias. Houve bloqueio na entrada das terras, os povos se isolaram e os membros das comunidades não puderam mais sair para as cidades. “Assim, eles evitaram que o coronavírus se espalhasse de forma rápida como estava acontecendo nos grandes centros urbanos”, afirma Antônio Eduardo Oliveira.

Já na terra indígena de Mangueirinha, e em outras da região sul, o engenheiro agrônomo relata que, desde o início, a ordem das comunidades é manter as pessoas em quarentena e só sair se for muito necessário. “Felizmente, nós temos as nossas lideranças, os nossos caciques, que estão tomando as medidas por conta própria e fazendo seu sistema de quarentena particular dentro dos territórios para amenizar a entrada do vírus.”

De acordo com o indígena do Paraná, os mais velhos dizem que isso tudo é algo que a natureza está devolvendo, de tanto os homens a destruírem. “Eles acreditam que se continuar assim algo pior pode ocorrer. Tem que ter esse respeito pelo meio ambiente, por tudo que você necessita. Nós precisamos das florestas, dos rios, dos animais. Eles não precisam da gente: se não estivermos aqui, eles vão continuar existindo”, ressalta.

Neste panorama de ameaças da covid-19 e de invasão de territórios, o Cimi tem realizado um trabalho para ajudar as comunidades a serem ouvidas por quem está no poder, mesmo isoladas.

“Nós temos feito esse contato permanente com eles, via telefone, para que nos enviem relatos sobre a situação das aldeias. Mesmo retirando os missionários das terras, para evitar o contágio, os próprios indígenas, especialmente os jovens, têm nos abastecido com informações e, assim, fazemos a divulgação para a sociedade e aos órgãos do governo”, acrescenta Oliveira.

“No momento, os indígenas têm clamado por esse apoio da sociedade, principalmente no sentido da proteção dos territórios e também com relação à alimentação, porque tem comunidades que não estão com condições de se prover internamente”, finaliza.

Quer saber como ajudar os povos indígenas? Clique neste link e colabore com campanhas de doações.

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