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“Mulher, negra, mãe de sangue e de coração de muitos”, assim começa a homenagem na plataforma Inumeráveis a Joana D’Arc Guimarães de Oliveira, professora que faleceu aos 85 anos, em Belém (PA), vítima do novo coronavírus. Nascida e criada em 1934 na mesma cidade, ela rompeu e transpôs inúmeras barreiras ao ser a única graduada de sua família e se estabelecer como profissional de educação física. “A minha mãe sempre teve convicção de que o estudo seria a única saída para a pobreza que ela vivia”, afirma seu filho, o servidor público Kleber Guimarães de Oliveira, em entrevista à Catraca Livre.
Joana D’Arc teve uma infância muito pobre. Seus pais chegaram a ter 21 filhos, mas muitos deles morreram durante a gestação ou ainda crianças, consequência da situação social da família. Segundo Kleber, sua mãe foi criada com 11 irmãos, mas apenas os cinco últimos mantiveram contato com ela ao longo da vida.
Sempre estudiosa, a paraense caminhava cerca de cinco quilômetros diariamente para chegar à escola. “Como ela revezava o sapato e a saia com a irmã, precisava sair de casa muito cedo e voltava praticamente correndo da aula. Assim, entregava os itens para que a irmã pudesse frequentar o colégio à tarde”, relata o filho.
Sua determinação a fez ser a única da família a conseguir uma graduação, e, depois disso, tornar-se professora na Universidade do Estado do Pará (Uepa), localizada em Belém. Ela foi da primeira turma de educação física da instituição, quando o curso passou a ser regulamentado no estado.
Além da luta por espaço na profissão, a professora criou cinco filhos sozinha porque o pai das crianças a abandonou. Teve também 10 netos e dois bisnetos. “Em 1977, o divórcio não era nem lei, então ela sofreu muito preconceito por ser uma mulher negra, divorciada e ainda ter que sustentar sozinha as crianças. Mamãe mantinha vários empregos em diferentes escolas para pagar as contas. Por causa dessa realidade, foi muito grata a tudo o que conquistou e sempre teve um sentimento de partilha”, explica o caçula.
Trajetória e atuação
Antes da graduação, Joana D’Arc já trabalhava na área da educação física. Pelo magistério, assumiu as disciplinas de folclore e recreação, assuntos com conhecimentos incipientes naquele período. “Ela virou referência em Belém e no estado nessas duas disciplinas”, ressalta Kleber.
No caso do folclore, pesquisava nos interiores do Pará sobre o comportamento das comunidades e como o tema se manifestava dentro delas. Ela também acabou se transformando em referência em relação ao lazer e à recreação, inclusive, a brinquedoteca da Uepa recebeu seu nome, ainda em vida, para homenageá-la.
“Mamãe era professora da universidade estadual, mas não chegou a ter mestrado, pois era bastante difícil na época, mas ganhou várias titulações de honoris por causa do conjunto de sua obra”, completa o filho.
De acordo com ele, a paraense foi bandeirante, que se restringia até então apenas para mulheres. “Ela teve uma grande contribuição para o Movimento Bandeirante aqui no estado, pois muitas vezes ele ficou quase desaparecido. Chegou a tirar do próprio bolso dinheiro para fazer manutenção dos grupos e da sede, sempre trabalhando muito à frente do seu tempo.”
Fundadora de um dos grupos do movimento, no bairro do Guamá, seu legado pode ser visto em um trabalho de educação não formal e cidadania para crianças e jovens adolescentes em situação de risco, realizado até hoje pela instituição.
Ela, que era muito religiosa, ainda atuava em grupos de trabalho comunitário, como o Legião de Maria. “Minha mãe foi muito diferente da curva e transmitia uma paz. Agora, na velhice, estava com dificuldades de locomoção e na visão, mas continuava uma pessoa muito cheia de energia e que tinha muita coisa para oferecer a quem precisasse.”
Legado
Joana D’Arc foi uma mulher matriarcal, independente e não se julgava feminista, mas era na prática e pelo conceito do movimento. “Sempre lutou pela independência da mulher e pela igualdade de gênero”, declara o caçula.
Os filhos, por sua vez, acompanharam lado a lado a personalidade e as histórias vividas pela professora. O que chamava mais atenção era a forma como ela sempre ajudava os outros, porém, naquele tempo, eles não entendiam tão bem os motivos que a levavam a fazer isso. “Ela tirava dinheiro do próprio bolso para dar a quem precisava, sendo que a gente ficava apertado financeiramente. Hoje, adultos, sabemos o quanto ela se doava às pessoas”, lembra.
Mais do que isso, Kleber a descreve como um porto seguro. “A nossa casa era frequentada por muitos desconhecidos, que solicitavam ajuda. E ela estava sempre lá, disponível para quem fosse. Ninguém saía de mão ou coração vazios”, pontua. “A grande lição que ela me deixou foi o exemplo de vida. Se eu for metade do que minha mãe foi e se dedicou à sociedade, já estou no lucro”, acrescenta.
“Mamãe era um colo para muitos, ademais dos filhos. Foi o ser humano mais nobre que eu conheci. E não digo isso por ser minha mãe, não. Qualquer outra pessoa que não seja filho dela vai responder com essa mesma descrição”, reitera.
Todo esse legado de Joana D’Arc veio à tona na hora de sua despedida, uma vez que não foi possível realizar um velório. “Recebemos muitos depoimentos que nos surpreenderam. Espontaneamente, as pessoas entraram em contato com a família para contar histórias dela, sobre coisas que tinha feito e gente que ela tinha auxiliado. Todos, como profissionais de educação física e bandeirantes, são muito gratos à mamãe”, finaliza.
Inumeráveis
A história narrada acima faz parte do projeto artístico “Inumeráveis”, apoiado pela Catraca Livre. Vidas perdidas não podem se tornar apenas estatística, e a população não deve se conformar com os números em constante aumento. Foi a partir desses incômodos que nasceu a plataforma, criada pelo artista plástico Edson Pavoni com o objetivo de reverter a lógica fria com que as mortes pelo novo coronavírus têm sido retratadas no Brasil e prestar homenagem às vítimas.
O projeto tem a missão de valorizar, em forma de registros históricos, cada uma das vidas perdidas em função da pandemia do coronavírus no Brasil e dar visibilidade a histórias antes invisíveis. “O objetivo principal é ajudar as pessoas individualmente e a se conectarem de forma mais verdadeira com a profundidade, a abrangência e a seriedade do momento que estamos vivendo”, afirma Edson à Catraca Livre.
Para além da valorização das memórias, a ideia da ação é trabalhar com os rituais de luto. “Muitas pessoas têm perdido entes queridos e não têm conseguido promover esses rituais como elas gostariam. Hoje, a gente vê que o ‘Inumeráveis’ se tornou um desses lugares onde elas compõem seus processos de luto”, reflete o artista.
Os próprios amigos e familiares podem enviar um texto sobre a pessoa ou preencher um formulário para que a plataforma crie esta homenagem. Para isso, a iniciativa conta com uma rede voluntária de jornalistas, estudantes, escritores e contadores de história, de norte a sul do país, que narram de forma sensível, pessoal e respeitosa as peculiaridades da vida de cada vítima.
No futuro, o projeto quer materializar as histórias por meio de uma instalação artística em local público e aberto ao ar livre. “Trabalhar a memória do que estamos vivendo é importante para que a gente nunca se esqueça e para que nenhuma dessas vidas se perca”, diz Edson. Outro intuito para o próximo ano é usar essa mesma metodologia para retratar os desastres invisibilizados que acontecem diariamente no país, como o feminicídio e os assassinatos nas favelas.
O “Inumeráveis” é uma obra do artista Edson Pavoni em colaboração com Rogério Oliveira, Rogério Zé, Alana Rizzo, Guilherme Bullejos, Giovana Madalosso, Jonathan Querubina e os jornalistas e voluntários que continuamente adicionam histórias ao memorial.
Saiba mais aqui.
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