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Ativista diz que sistema de proteção de povos não contatados em Rondônia está sucateado e chama atenção para o risco de etnocídio silencioso, enquanto queimadas e outros crimes ambientais avançam na Amazônia.
Ivaneide Bandeira, de 61 anos, perdeu cinco pessoas próximas em apenas 20 dias. De seu quintal, ela enxerga a fumaça que há dias encobre a visão do céu e a recorda que não há tempo para viver o luto. Seu celular não para, com relatos de invasões de terra, problemas relacionados à pandemia e ao avanço das queimadas sobre a Amazônia em Rondônia.
“Estou completamente desestruturada”, diz. Ela é coordenadora-geral da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, que atua na proteção dos povos indígenas do estado. Ivaneide fundou a organização em 1992 junto com Rieli Franciscato, sertanista histórico que coordenava a Frente de Proteção Uru-Eu-Wau-Wau na Funai e foi atingido por uma flechada de um indígena isolado no último dia 9 de setembro.
O episódio jogou luz sobre o clima de tensão vivido pelos povos não contatados, sob ameaças diversas. Em entrevista à DW Brasil, a coordenadora da Kanindé relata o abalo psicológico vivido por ela e os demais integrantes da associação, vincula a morte do amigo ao desmonte da Funai e chama atenção para o risco de etnocídio silencioso dos povos isolados em meio às queimadas.
“Com o desmonte das equipes do Rio Madeira e de toda a estrutura da Funai, não sabemos sequer se eles estão vivos”, alerta.
DW Brasil: Como está o seu psicológico tendo que lidar com sucessivos lutos e tragédias?
Ivaneide Bandeira: Acho que envelheci 20 anos neste ano de 2020. Estou numa tensão muito grande. Perdi o meu cunhado quatro horas antes de saber do Rieli. Em 20 dias, tivemos cinco mortes. Estou completamente desestruturada. A vontade, o tempo todo, é de chorar. Eu me sinto inútil vendo a floresta queimando, sendo derrubada, com os índios ameaçados de morte. Em abril, tivemos o assassinato do Ari Uru-Eu-Wau-Wau, professor e líder na área. Foi um crime bárbaro, dentro da terra indígena, até agora sem solução. A gente acredita piamente que está relacionado à invasão da TI para roubo de madeira e grilagem.
Nossa situação é terrível. Estamos extremamente fragilizados, vulneráveis e psicologicamente abalados. É muito difícil dormir de noite. Durante o dia, tento ocupar a mente com várias outras coisas, mas não consigo, porque a cada hora tem um indígena ligando para relatar invasão, outro para falar da pandemia, outro porque está com medo. O dia vira uma loucura e, quando chega a noite, não tem como deixar de pensar em toda essa situação trágica que estamos vivendo na Amazônia e no Brasil. Eu nem sei como classificar isso, mas estamos vivendo uma tragédia humana. A gente pensa também nos animais que estão morrendo e na vegetação destruída. Podemos estar eliminando remédios ainda não descobertos para uma série de doenças. Ou seja, o futuro da humanidade. Só espero que 2021 não repita 2020.
DW Brasil: Chegam ameaças para você e outras pessoas do Instituto Kanindé?
O tempo todo. A situação é tal que a gente agora teve que pedir orientação sobre como se defender. Eles são muito espertos. Foi-se a época que mandavam ameaças pela internet ou telefone. Geralmente, chega alguém que você nunca viu na fila do banco para bater nas suas costas e dizer: nossa, você é muito corajosa, né? Se eu fosse você, tomava cuidado, porque o pessoal sabe onde você mora, todo mundo conhece a sua cara. Não tem medo de morrer? Você tome cuidado. É uma situação bem difícil.
Como você avalia a atual situação dos povos indígenas isolados em Rondônia?
A situação é extremamente crítica. Há oito povos isolados detectados em Rondônia. Desses grupos, três estão dentro da Terra Indígena Uru-eu-wau-wau, e os outros cinco estão distribuídos em áreas de proteção ambiental e no entorno de terras indígenas do estado. Se os grupos que estão dentro dessas reservas não estão protegidos, imagina os que estão fora de terras indígenas. Do nada, a Funai acabou com a Frente de Proteção do Rio Madeira, deixando toda essa área completamente desprotegida. Na Frente Uru-eu-wau-wau, onde estava o Rieli, não há recursos humanos suficientes para fazer o trabalho. Basta ver que o Rieli tinha ido checar a situação com a polícia, porque não tinha pessoal para o acompanhar.
O que aconteceu com ele é sintomático de como é tratada a questão dos índios isolados no Brasil hoje. A atenção a esses povos sempre foi considerada o trabalho mais fino da Funai, ao qual eles destinavam mais cuidado, pela delicadeza da situação. No entanto, essas frentes estão todas fragilizadas. A Funai inteira está sucateada. Temos um órgão com poucos recursos humanos, que nem dentro das áreas estão, o que é um erro. A fiscalização é ineficaz, porque não tem gente pra fazer. O órgão não tem poder de polícia, recursos humanos e nem equipamento. É humanamente impossível querer que eles deem conta. O governo não fortalece seus próprios servidores. A morte do Rieli, além de chamar atenção pra toda essa situação dos isolados, também joga luz sobre a situação em que se encontra a Funai hoje.
Quais são os principais problemas da atuação da Funai hoje?
O coordenador de povos isolados hoje é um missionário, sendo que esse cargo deveria ser exercido por uma pessoa experiente, que faça esse trabalho ao longo dos anos e entenda de toda a problemática. O desmanche não é só da Funai, mas de toda a política indigenista. Os servidores não têm o apoio necessário para cumprir sua missão e não há força política. A gente conhece bem as dificuldades. O que cobramos é um fortalecimento da Funai: que o governo abra concurso público, dê equipamentos, orçamento decente, recursos humanos suficientes e poder de polícia para o órgão. Hoje, se a Funai entrar numa área sem estar acompanhada da polícia ou do Ibama, não pode prender ninguém. Com tantos problemas de corrupção, tráfico de drogas e invasão de terras para resolver, a Polícia Federal também não dá conta. A maior de todas as fragilidades é ter um governo contra os povos indígenas.
E, nos estados, temos políticos incentivando a invasão de áreas protegidas. Em um ano eleitoral, esse cenário se agrava ainda mais. A Secretaria de Meio Ambiente do governo de Rondônia está propondo reduzir a reserva extrativista Jaci-Paraná e o Parque Estadual de Guajará-Mirim, onde há atuação de grileiros. Eles querem premiar esses criminosos dando as terras que eles grilaram. O governo tinha que fazer um laudo de impacto ambiental e exigir que todos eles recuperassem a área degradada, tirá-los de lá e multar todo mundo, para dar uma mensagem clara, de que não adianta invadir reservas, parques, unidades de conservação e terras indígenas. Em vez disso, premiam a bandidagem que roubou e desmatou. No meio disso, estão os índios isolados. Com o desmonte das equipes do Rio Madeira e de toda a estrutura da Funai, não sabemos sequer se eles estão vivos.
Quais dos problemas atuais são novos e o que já acontecia historicamente na região?
No caso da TI Uru-eu-wau-wau, por exemplo, um velho problema é o Projeto de Assentamento Burareiro, uma área dentro da terra indígena onde o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) cedeu 122 títulos de terra que hoje são utilizados por invasores. A região estava em litígio, não podia ser desmatada, e os caras derrubaram tudo. Serviu como incentivo à invasão dentro da terra indígena. A principal novidade é o aumento das invasões e queimadas pelo fato de as pessoas acreditarem que o governo vai dar a terra. O avanço se intensificou muito. Outro fenômeno é o aparecimento de associações de produtores rurais que promovem a invasão de terras indígenas. Em paralelo a isso, a gente observa uma invasão nas áreas limítrofes dos territórios demarcados, o que também acontece em unidades de conservação.
Essas invasões têm o único objetivo de se apropriar do território para entrar em seguida nas áreas protegidas. Além disso, embora alguns fazendeiros com propriedades nessas fronteiras entrassem nas terras indígenas, eles não eram vistos incentivando invasões. Hoje em dia, estão junto com os invasores. Isso é muito recente, impulsionado pelo discurso do Bolsonaro. Eles falam que estão ali porque o presidente diz que vai dar a terra. Antes, havia um certo medo das ações do Ibama, Funai e ICMBio. Hoje em dia, eles encaram os servidores e vão para cima deles com o objetivo de atacar, porque acreditam que o ministro Ricardo Salles vai paralisar a fiscalização e ficar do lado deles. Eles têm fundamento para isso, porque nós não temos um ministro do Meio Ambiente, mas um sinistro do meio ambiente.
Em meio às queimadas que afetam a região, é possível monitorar a movimentação dos indígenas, incluindo os isolados?
Esta é outra preocupação nossa, porque lá a região onde houve o incidente com o Rieli é foco de queimadas, e a gente não sabe se os caras colocaram fogo nas áreas onde ficam os indígenas, nem sabemos como eles estão. A gente só consegue monitorar os focos de queimada e acompanhar aqueles com quem mantemos contato. Eu fiquei apavorada na semana passada, quando morreu o fiscal do ICMBio que estava apagando o fogo na região. Fiquei pensando nos isolados em uma situação daquelas. O fogo avança sem controle e, quando você vê, está cercado. São regiões distantes. A gente fica se perguntando como os invasores entram em determinadas áreas. Nos mapas do INPE, Rondônia aparece sob fumaça. E o governo nega que esteja acontecendo.
Qual você considera ser o maior legado do Rieli?
O maior legado que ele deixa é a defesa dos povos isolados. Ele sempre defendia que se mantivesse o monitoramento, e o contato acontecesse quando não houvesse outra alternativa. Ele morreu nessa luta. O legado dele é a luta pela garantia da vida dos povos isolados, com seriedade e compromisso. A gente não pode, de forma nenhuma, deixar o trabalho dele desaparecer. Este é um compromisso pessoal meu: garantir a continuidade do trabalho de proteção aos índios isolados.
#Envolverde
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