O valor da vida, o valor da liberdade - Ecoo

O valor da vida, o valor da liberdade

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Por Amelia Gonzalez, especial para o Blog da Amelia Gonzalez –

O que você traz sobre os ombros que lhe pesa tanto?

A vida? Mas ela é leve quando se sente, quando se intui.

O que faz sua coluna se arquear tanto, em busca do chão?

Os cabelos raros e brancos estão se movendo à mercê do vento gostoso, fresco, que está soprando no instante. Mas você anda tão carrancudo, que é capaz de nem ter sentido a brisa no rosto.

 Desarme esta postura caída, encha a barriga de ar, solte o ar também pela barriga. Tire a máscara um instante, um instante só não vai te fazer mal. Veja: não há ninguém ao seu lado que possa lhe transmitir o vírus.

Na úmida manhã de domingo, primavera de 2020, ele passou por mim. E quase fui, abusada, trocar com ele alguns pensamentos. Teria dito tudo isto aí em cima. Teria desejado, ao final de nossa conversa imaginária, que ele abandonasse as representações e apenas vivesse. Um homem idoso e um peso enorme sobre os ombros.

Ando pensando sobre o valor da vida. Não pode ser menor do que a indignação com o salário, o desemprego, a desigualdade, os políticos. Não pode ser menor do que os credos. Não pode ser menor do que a raiva, do que as desavenças de opiniões. A vida é mais! E, quando ela acaba, é num sopro.

Adoro ouvir boas notícias, sobretudo nesses tempos sombrios. Tantas pessoas carregando na rua o peso de seus pensamentos não bons…

Pois M., cujo nome não tenho liberdade para revelar, ligou-me esta semana e me encheu de alegria. Nos falamos com alguma frequência desde que tudo começou, o isolamento, a pandemia, tudo. Desde que tudo virou pelo avesso aquilo que considerávamos normal. M. vinha aqui em casa uma vez a cada quinze dias e me ajudava a manter limpo o meu espaço.

“Dona Amelia, está tudo bem comigo, com minha família. Mas acho que, se um dia a senhora voltar a precisar de minha ajuda, não vou poder lhe atender. Porque estamos vendendo bolos, empadas, pão de queijo, numa barraca aqui perto de casa. Foi o jeito que conseguimos de continuar pagando contas, comendo. E está dando muito certo! Eu trabalho muito, viu? Não vou lhe enganar não. Meu marido, meus filhos, todo mundo na luta. Fazemos entrega, eu cozinho até de madrugada e abrimos a barraca às nove. Fechamos às oito. Mas o que importa é que está indo bem. Eu indico alguém, se a senhora precisar, viu? E um dia, quem sabe, consigo ir aí levar um bolo de pote que faço. Todo mundo gosta.”

M. não me parecia, exatamente, feliz. Mas, aliviada, isto sim. Foi um sopro de vida a ideia de fazer coisas para vender. E está dando certo!

Olhem a coincidência: dia desses, no “Papo com Favela”, programa que o jornalista Andre Balocco apresenta às terças e sextas às 19h no seu Instagram, ele entrevistou Rita Afonso. Professora da UFRJ, uma pessoa única, inteligente e cheia de energia, ela se tornou minha fonte quando eu editava o “Razão Social”. Daí se tornou amiga. Ela foi apresentar o programa de extensão da UFRJ chamado Manamano. É bem sugestivo: a universidade juntou-se a algumas organizações da sociedade civil para criar um Fundo e, assim, ajudar pessoas da periferia, de comunidades, como aquela em que M. vive, a empreenderem. Quem quiser, pode doar, é só entrar no site https://www.manamano.org.br . A meta é arrecadar R$ 2,6 milhões no primeiro ano, beneficiando 700 empreendedores.

Empreender quer dizer pôr em execução, realizar, tentar.

Rita Afonso está tentando e está conseguindo. Também foi uma boa notícia. No dia 22 de setembro, o projeto reuniu algumas pessoas numa live, para apresentá-lo.  Uma das futuras beneficiadas foi entrevistada. E contou uma história tão parecida com a história de M. que me fez refletir.

Primeira reflexão: a pandemia está mudando o rumo dos acontecimentos para muita gente. Deu um sacode, como num trem cheio, e juntou as pessoas, que bom. Solidariedade, no dicionário, é descrita como um “compromisso pelo qual as pessoas se obrigam umas às outras”. Não sei se concordo com uma definição assim tão rígida. Ou… posso preferir outra palavra: contato. É, a pandemia isolou muito mas, ao mesmo tempo, tem convidado a fazer contato, mesmo que seja por este meio esdrúxulo, o virtual. As pessoas estão contando suas histórias, e quem sabe pôr a mão na massa, vai à luta, anda conseguindo.

Há outras tantas nuances socioeconômicas da Covid nada positivas, claro. Como, por exemplo, o fato de ela deixar transparente também um dos maiores males que assola os homens hoje, a desigualdade.

Segunda reflexão, e aqui eu vou fazer o link com o personagem que me inspirou a começar este texto. A doença escancarou a necessidade de rever nossos valores. Em outras palavras: a doença escancarou a necessidade de darmos mais valor à vida do que a qualquer, eu disse qualquer, outra coisa.

Estou falando de todas essas coisas que andam nos deixando de ombros caídos, coluna mais curva, quer seja aos 80 (idade próxima do meu personagem), aos 60, aos 20. Na semana que acabou, no meu grupo de estudos (agora virtual), o professor Gustavo Vasconcellos falou-nos em Vida Zoé. Busquei descobrir: é a palavra original, grega, para designar Vida, mas uma vida que pertence a Deus. Eu quero a vida que vem da arte, da filosofia, e que me pertence. Eu quero refletir com informações variadas. Eu quero ler muito, ouvir muito, falar muito.

Sobretudo, quero a vida que possa ser vivida, que não esteja amarrada em assuntos dos quais eu não posso dar conta. Quero vida para respirar, para refletir, para caminhar. E preciso de capital para isto. Precisamos todos. Criamos um mundo que não nos deixa outra opção. Mas, gente, viver é SER. Viver não é TER. Quero fazer acordos com minhas necessidades, cortar alguns desejos, compor com o tempo para viver.

Li, dia desses, uma notícia sobre o resultado do estudo “Covid, Classes Econômicas e o Caminho do Meio: Crônica da Crise até Agosto de 2020”, da FGV Social, dando conta de que a pobreza no Brasil alcançou o nível mais baixo de toda a série. Neste estudo, entende-se como indicativo de pobreza uma renda mensal de até R$ 522,00. Como o parlamento decidiu instituir um auxílio emergencial para os cidadãos brasileiros de R$ 600,00, essas famílias dobraram de renda. E começaram a comprar, o que “ajuda a aquecer a economia”. E passaram para a classe C.

“O trabalhador (…) é reconhecido como membro útil à sociedade e pode criar uma narrativa de sucesso relativo pela sua trajetória pessoal…. Destrói-se a grande fábrica fordista e transforma-se o mundo inteiro numa grande fábrica, com filiais em cada esquina, sem lutas de classe, sem sindicatos, sem garantias trabalhistas, sem greve, sem limite de horas de trabalho e com ganho máximo ao capital. Esse é o admirável mundo novo do capitalismo financeiro”.

Tirei o trecho acima do livro “Batalhadores brasileiros” (Ed. Humanitas), obra escrita pelo professor, sociólogo e  ex-presidente do Ipea Jessé Souza (com colaboradores), em 2010. É um livro fundamental para se entender o processo de vida versus trabalho. Ou, de como o trabalho passa a ser o mote da vida. E mostra também como o fenômeno não é novo, não é só na pandemia que tem acontecido. Hoje, na verdade, tais situações têm sido mais vistas e estão arrebanhando ajuda, o que é muito bom.

O que mais gostei nos relatos que descrevi lá em cima foi da união das pessoas. Fiquei imaginando, e minha imaginação é fértil, todo mundo feliz com o sucesso, dando-se conta de que precisavam tirar um dia, ao menos, da semana, para usufruir disto como quisessem. No meu cenário ideal, eles iriam para um parque bonito, devidamente protegidos, e ali passariam o dia a fazer um bom piquenique, a ver patos em lagos e crianças brincando em terra.

Temo que não seja isto. Temo mais: que parte do capital conseguido a partir de tanto esforço fique na farmácia do bairro, com remédios para suprimir dores e alterações orgânicas por conta do excesso de tensão.

Antes que me condenem por estar fora da realidade do país e do mundo, ou por focar numa “agenda de esquerda”, gostaria de citar aqui um trecho da fala do ex-presidente Pepe Mujica, que já recebeu a alcunha de “o presidente mais pobre do mundo”:

“A única coisa que não se pode comprar é a vida. A vida se gasta. E é miserável gastar a vida para perder a liberdade” (Pepe Mujica em 18 de setembro de 2015).

#Envolverde

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Fonte

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