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Eunice Farah, 77 anos, Fabiano Honório da Rosa, 38, Nelson Carlos Alves, 54, Raphael Freitas, 28, e mais de 22 mil pessoas estão entre as vítimas da covid-19 no Brasil. Por trás dos números em crescimento no país, estão histórias de milhares de brasileiros. Por trás das declarações irresponsáveis de governantes, há familiares e amigos que vivem o luto solitário após perderem entes queridos para a doença.
Vidas perdidas não podem se tornar apenas estatística, e a população não deve se conformar com os números em constante aumento. Foi a partir desses incômodos que nasceu a plataforma “Inumeráveis”, criada pelo artista plástico Edson Pavoni com o objetivo de reverter a lógica fria com que as mortes pelo novo coronavírus têm sido retratadas no Brasil e prestar homenagem às vítimas. “Não há quem goste de ser número, gente merece existir em prosa”, ressalta ele por meio da poesia que deu origem ao memorial.
O projeto tem a missão de valorizar, em forma de registros históricos, cada uma das vidas perdidas em função da pandemia do coronavírus no Brasil e dar visibilidade a histórias antes invisíveis. “O objetivo principal é ajudar as pessoas individualmente e a se conectarem de forma mais verdadeira com a profundidade, a abrangência e a seriedade do momento que estamos vivendo”, afirma Edson em entrevista à Catraca Livre.
Para além da valorização das memórias, a ideia da ação é trabalhar com os rituais de luto. “Muitas pessoas têm perdido entes queridos e não têm conseguido promover esses rituais como elas gostariam. Hoje, a gente vê que o ‘Inumeráveis’ se tornou um desses lugares onde elas compõem seus processos de luto”, reflete o artista.
Os próprios amigos e familiares podem enviar um texto sobre a pessoa ou preencher um formulário para que a plataforma crie esta homenagem. Para isso, a iniciativa conta com uma rede voluntária de jornalistas, estudantes, escritores e contadores de história, de norte a sul do país, que narram de forma sensível, pessoal e respeitosa as peculiaridades da vida de cada vítima.
No futuro, o projeto quer materializar as histórias por meio de uma instalação artística em local público e aberto ao ar livre. “Trabalhar a memória do que estamos vivendo é importante para que a gente nunca se esqueça e para que nenhuma dessas vidas se perca”, diz Edson. Outro intuito para o próximo ano é usar essa mesma metodologia para retratar os desastres invisibilizados que acontecem diariamente no país, como o feminicídio e os assassinatos nas favelas.
O “Inumeráveis” é uma obra do artista Edson Pavoni em colaboração com Rogério Oliveira, Rogério Zé, Alana Rizzo, Guilherme Bullejos, Giovana Madalosso, Jonathan Querubina e os jornalistas e voluntários que continuamente adicionam histórias ao memorial.
Como nasceu o projeto
O principal campo de pesquisa do artista e idealizador da iniciativa é a conexão: por que as pessoas se conectam e por que elas se desconectam de alguém ou de alguma coisa? Desta forma, Pavoni percebeu, logo no início da pandemia, que a sociedade estava se tornando cada vez mais insensível às mortes da covid-19. “O número vai aumentando e cada vez mais ele quer dizer menos”, ressalta.
Neste começo, Edson entrou em contato com o amigo, Rogério Oliveira, que também estava incomodado. Uma ligação de telefone entre os dois foi o necessário para a idealização do projeto.
Mas, antes do memorial existir na plataforma “Inumeráveis”, o artista quis ter certeza de que essa ideia seria boa para a sociedade no enfrentamento do processo de luto. “Então, eu e a Alana Rizzo, uma jornalista que entrou no projeto, entrevistamos uma pessoa que tinha perdido o sogro e a sogra para a doença. Foi muito importante essa primeira entrevista porque, no final da conversa, ela estava melhor do que no começo, embora ainda triste e em luto”, conta.
A experiência o fez entender que acontece algo positivo quando a gente pede para alguém falar sobre o que a pessoa que faleceu tinha de único e especial. “Quando esta celebração da vida nasceu, um pedaço da cura também parece que vem à tona”, completa.
Ainda neste primeiro momento, os idealizadores pensaram sobre qual seria a melhor forma de contar essas histórias. “Quando surgiu a ideia, para mim era claro que não podia ser apenas uma ferramenta de relatar histórias. O que a gente estava fazendo era em si uma obra, e essa onda de cura faz parte dela”, explica.
“Eu passei quatro ou cinco dias pensando qual seria o nome do projeto e escrevendo uma poesia. ‘Inumeráveis’ é essa ideia de dizer, em uma única palavra e de um jeito muito simples, que pessoas não são números”, finaliza o artista plástico.
Imagens a partir de palavras
O projeto convida as pessoas a colaborarem de duas formas: a primeira, direcionada a jornalistas, estudantes de jornalismo e outros profissionais que queiram reportar uma história; a segunda, destinada a familiares e amigos que gostariam de prestar uma homenagem à vítima.
Também é possível o parente ou amigo preencher um formulário ou mandar um áudio via WhatsApp. Depois, alguém do time da iniciativa vai escrever a história a partir das respostas. Todos são auxiliados pela plataforma moderadora desenvolvida para captar de forma aberta e integradora os registros já realizados. Veja aqui como participar.
“A gente tem um manual com dicas sobre como fazer o texto. Quando estou entrevistando a pessoas, não estou querendo necessariamente tirar dela como foram os últimos dias do homenageado, mas sim, como foi a sua vida e o que nela pode ser celebrado. Assim, nasce um tipo de texto: celebratório, o qual o homenageado gostaria muito de ler se pudesse”, ressalta Edson.
O artista explica que tem algo essencial do memorial, assim como acontece na poesia, que é o ato de criar imagens a partir das palavras. “Algumas pessoas falam: ‘no memorial não tem fotos ou imagens’, mas não é verdade. Os textos contêm imagens muito vivas. Por exemplo, a primeira história contada foi do senhor Edgard Farah. O epitáfio dele tem a seguinte frase: ‘Orgulhoso dono de um fusca bege 1972 que usava para buscar na escola os 7 netos’. Com essa frase, eu consigo criar uma imagem muito rica do seu Edgard”, reflete.
Histórias, não números
A poesia como método para contar histórias coloca o leitor em íntimo contato com a essência das pessoas homenageadas dentro da plataforma.
Ao acessar o memorial, você vai conhecer, por exemplo, a vida do paraense Frederic Jota Silva Lima, um jovem médico que, aos 32 anos, atuava na linha de frente contra a covid-19, narrada a partir do testemunho enviado pelo amigo Guilherme Capeche Almeida.
No “Inumeráveis”, a mineira Eunice Farah, que tinha 77 anos, foi descrita como uma mulher “muito alegre”. Ela venceu uma batalha contra um câncer de laringe, com sessões de quimioterapia e bombas de medicamento, sem lamentar. Apaixonada pelo Carnaval, buscava conforto e alívio na música. Ecumênica, frequentava o centro espírita às terças e, aos domingos, a igreja evangélica. “A fé de dona Eunice era na vida e nas pessoas”, retrata o texto.
As histórias acima trouxeram, sobretudo, a oportunidade para que as pessoas homenageiem e descrevam um pouco das características de alguém querido, que, infelizmente, se tornou vítima do novo coronavírus.
“A gente tem recebido uma resposta muito contundente de familiares, amigos e da sociedade, e isso só me mostra que esse espaço criado pelo ‘Inumeráveis’ era um espaço que todos estavam precisando”, pontua Edson Pavoni. “Resumindo: a plataforma estabeleceu um jeito emocional de fazer as pessoas se conectarem e ajudou a imprensa a equilibrar as pautas, entre estatísticas, ciência e humanidades”, conclui.
Abaixo, a Catraca listou algumas das homenagens aos nossos “Inumeráveis”. Confira:
- Simone Maria da Silva Bezerra (1976 – 2020)
“Bonita por fora e linda por dentro, não se descuidava de si e nem dos outros ao seu redor.
Simone era uma mulher muito vaidosa, gostava de estar sempre bonita e mantinha belos cabelos cor de vinho. Era manicure e fez isso até poucos dias antes de ficar doente. Também era técnica em enfermagem, profissão que amava e exerceu com afinco. Cuidava de idosos.
Tinha um sorriso largo, que estava sempre em seu rosto. Se desdobrava para dar o melhor para os filhos – Rennale, Joyce e Vinícius -, foi casada por 23 anos e amava seu marido, Jaildo.
Sempre ajudava todos, à sua maneira. Incentivou seus filhos a ajudarem na igreja. Era católica e muito devota de São Sebastião, padroeiro de nossa cidade.
Sentia muito amor pela família, sem distinguir ninguém. Sempre que possível, reuniam-se para confraternizar. Otimista, dizia: “Tenham calma, tenham paciência”. Não suportava intrigas entre os seus: sempre pedia paz.
Em janeiro de 2020, realizou o sonho de ver sua filha Rennale formar-se em design, pela Universidade Federal de Campina Grande. Foi um dia muito feliz para ambas.
A imagem dela, sempre sorrindo, nunca será esquecida.
Sua bondade ficará eternamente no coração de seus familiares.
Simone era a filha mais velha entre os seis filhos de Antônio e Analice. Partiu na mesma semana que sua irmã Ana, da mesma causa. Saudades eternas.
Simone nasceu em São Sebastião de Lagoa de Roça (PB) e faleceu em São Sebastião de Lagoa de Roça (PB) aos 43 anos vítima do coronavírus.
História revisada por Flávia Campos, a partir do testemunho enviado por irmão Janilson Calixto, em 18 de maio de 2020.”
- Francisco Gelli (1945 – 2020)
“Felicidade para ele era um almoço de domingo cercado pela família.
Um grande amante da música clássica e de comer bem, como um típico filho de italianos. Pai amoroso, filho dedicado, irmão protetor e um bom companheiro de todos que amou. Ajudou tanta gente em sua trajetória e era querido e respeitado por todos. Um grande exemplo pros que aqui ficam.
Francisco nasceu em São Paulo e faleceu em São Paulo aos 74 anos vítima do coronavírus.
História revisada por Edson Pavoni, a partir do testemunho enviado por filho Ricardo Gelli, em 9 de maio de 2020.”
- Adelita Ribeiro da Silva (1982 – 2020)
“Uma heroína que perdeu a vida para salvar vidas.
Adelita era uma mulher de costumes. Primeiro porque tinha um dia religioso para fazer um churrasco entre os amigos. Se fosse sábado, quem estava no grupo seleto sabia: haveria uma boa carne, uma cerveja e muita brincadeira. Tinha reclamação de vez em quando, logo de Delita, que falava logo se algo não lhe agradasse.
Não teve filhos, mas criou laços com o sobrinho. Gostava de levá-lo para passear de vez em quando. Chegava do passeio, devolvia aos pais. Nos churrascos, pedia que não lavassem as coisas. Queria dormir. E tinha esse mesmo comportamento quando a chamavam para sair: na mesma medida em que queria ir curtir, queria dormir e descansar. Era assim, cheia de manias.
Delita era profissional da área da saúde. Técnica em enfermagem e de laboratório, trabalhou durante a pandemia até onde conseguiu. E conseguiu ajudar muitas pessoas. Em vida, fez campanha a favor do isolamento social.
Ao falecer, foi considerada “uma heroína que perdeu a vida para salvar vidas” pelo governador de Goiás, Ronaldo Caiado.
Adelita nasceu em Itapaci (GO) e faleceu em Goiânia (GO) aos 37 anos vítima do coronavírus.
Jornalista desta história Josué Seixas, em 10 de maio de 2020.”
Leia mais depoimentos na plataforma do projeto.
Catraca e Inumeráveis
A Catraca Livre apoia o projeto artístico “Inumeráveis” e seu objetivo de não permitir que as mortes pela covid-19 sejam naturalizadas nem invisibilizadas no Brasil. Por isso, nas próximas semanas, iremos publicar histórias para homenagear as vítimas, em parceria com a plataforma. É a forma que encontramos de “abraçar” essas famílias. Acompanhe.
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