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Qual a profundidade de sua relação com a comida?

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Mais uma semana de isolamento social. Já revisitamos todos os cantinhos da casa, arrumamos os armários, e fizemos ligações por vídeo com amigos e familiares. Maratonar séries de TV vem sendo o esporte de muita gente desde meados de março. Oportunidade de tirar o atraso e assistir a todos os episódios mais comentados.

Foi dessa forma que, buscando algo para me distrair, encontrei em um serviço de streaming um filme espanhol cuja história se passa em uma prisão diferente; nesta prisão, na qual não há apenas condenados, mas também voluntários, todos estão confinados em uma estrutura profunda de concreto vertical, chamada de “o poço”.

Sem spoilers aos que não o assistiram ainda, há questões alimentares interessantíssimas tratadas no filme, que são importantes para nós refletirmos nesse período de quarentena.

O filme retrata realidades de um futuro distópico. A prisão possui vários níveis, semelhantes a andares de um enorme prédio, que dividem confinados. A grande diferença entre os níveis dá-se quando uma enorme plataforma de concreto repleta de comida passa entre cada um deles. Confinados nos níveis mais altos têm a oportunidade de receber a plataforma com mais comida; aqueles que se encontram nos níveis mais baixos, por sua vez, a recebem com menos comida, exatamente porque confinados acima já tiveram a oportunidade de se servir.

Crédito: Reprodução/NetflixCena do filme “O Poço”

Quais são os aspectos interessantes? Dois principais: o primeiro, e óbvio, que já tratei aqui na semana passada, é o de que somos indivíduos em sociedade. Ações de uma pessoa têm consequências para a realidade de outras. Assim, quando alguém confinado em nível mais alto come muito mais do que o necessário na prisão, sem pensar no próximo, nos que estão nos níveis “de baixo”, haverá necessariamente escassez, fome, desespero e perda de humanidade naqueles que estão em andares inferiores.

Da mesma forma, ir ao supermercado e comprar muito mais do que se necessita para um dado período, estocando mercadorias de maneira exagerada, abre a possibilidade para outras pessoas irem às compras e não encontrarem o que precisam, estimulando-as também a estocar por precaução. Isso é maléfico para todos em período de quarentena, podendo trazer escassez de bens básicos.

E além da questão do estoque em si, porém, há outra consequência crucial que decorre do ato de estocar: o perigo que a alta disponibilidade de comida pode despertar em muitas pessoas.

É óbvia a comparação entre a plataforma móvel repleta de comida passando pelos níveis da prisão e a geladeira ou dispensa de nossas casas cheias de alimentos após compras impulsivas em tempos de coronavírus. Em ambos os casos há o antagonismo entre a restrição e a liberação, a escassez e a fartura.

Já tratei, em muitas oportunidades, o potencial danoso que restrições alimentares possuem. As consequências não são só físicas, como a fome, por exemplo. Há também implicações emocionais, tais como pensamentos obsessivos sobre comida, aumento da voracidade, irritabilidade, agravamento dos riscos de episódios de exagero e até de compulsão alimentar, além de culpa e desconexão com sinais de saciedade.

No filme, restrições impostas pelo gerenciamento de comida na prisão desencadeiam graves consequências na relação dos indivíduos com a comida. Quanto mais se percebe a sensação de falta de comida (ou a potencialidade de falta em futuro próximo), maior é o sentimento compulsivo diante da abundância temporária dos alimentos.

Garfos? Para que usá-los se é possível ser mais eficiente ao comer com as mãos, enfiando para dentro doces e salgados, líquidos e sólidos, macios e duros de uma só vez, sem sequer se preocupar em mastigá-los direito, muito menos em sentir seus gostos, aromas, texturas e sensações?

O que está na representação fantasiosa do filme acontece como realidade para muitos que vivem a sensação de perda de controle nos episódios de comer compulsivamente.

Mais ainda para aqueles que se colocam em situação de quarentena com uma ampla disponibilidade de alimentos estocados e sem estruturar uma rotina adequada de refeições.

A chance de nossas geladeiras e dispensas se transformarem em uma plataforma permanente passando na nossa frente, levando-nos a cair sobre ela de modo compulsivo, torna-se um problema real, e sobre o qual todos devemos estar atentos.

Espero que, neste caso, a vida não imite a arte. Se construirmos uma relação saudável, equilibrada e gentil com a comida durante a quarentena, certamente episódios de compulsão alimentar tais quais os do “poço” ficarão apenas onde devem estar, no campo das séries e de dos filmes na TV.

Texto escrito pela nutricionista Marcela Kotait.

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