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por Luana Tolentino, Carta Capital –
A reprovação tem sido um instrumento eficaz de manutenção do racismo nos espaços escolares
Confesso. Tenho certa dificuldade de guardar o nome dos meus alunos e alunas. Contudo, do rosto de cada um, jamais me esqueço. Ainda que passe anos sem vê-los, quando os encontro, lembro sempre. Nessas ocasiões, costumo ser interpelada por palavras que me tocam profundamente: “Oi, professora Luana! Tudo bem com a senhora?” Me derreto. Me acabo. Ser chamada de professora é motivo de muito orgulho pra mim. Me sinto realizada.
Pouco antes do início da quarentena, encontrei um ex-aluno. Pedi desculpas por não lembrar o nome dele. “É Renato, professora! Meu nome é Renato!” – ele disse. Sabia que havia sido professora dele no 6º Ano. Como sempre faço, perguntei pelos estudos:
– Tudo bem com você? Já formou?
– Formei nada, professora! Parei de estudar…
– Uai?! Parou por quê? Não acredito!
– Tomei três bombas no 6° ano. Aí saí da escola…
– Vou torcer para que você possa voltar!
– Tá bom, professora…Ele respondeu sem muito entusiasmo.
Nosso diálogo ocorreu enquanto o Renato esperava o sinal fechar para vender pipocas. Alguns segundos depois da nossa breve conversa, os carros pararam. Não quis atrapalhá-lo. Nos despedimos. Acho que foi melhor assim. Fiquei sem palavras. Pergunto: O que justifica a permanência de um estudante por três, quatro, cinco anos na mesma série? Respondo: Em grande medida, o racismo.
A reprovação tem sido um instrumento eficaz de manutenção do racismo nos espaços escolares. No ano de 2009, ao empreender um estudo em escolas municipais da cidade de São Paulo, Marília Pinto Carvalho constatou que crianças negras apresentavam maior frequência nas salas de reforço escolar, e, consequentemente, os maiores índices de repetência.
Os dados levantados pela pesquisadora corroboram com a recente pesquisa feita pela Fundação Tide Setubal. Tendo como objeto de análise as notas dos educandos matriculados em classes do 5º Ano de escolas públicas da capital paulista, concluiu-se que os meninos negros ficaram em último lugar no que diz respeito ao êxito escolar. Em penúltimo, estavam as meninas da mesma cor.
Recentemente, o IBGE apresentou o resultado de uma pesquisa que não deixam dúvidas quanto o impacto da discriminação e da pobreza no que diz respeito à permanência e ao sucesso da juventude negra nas escolas. Somente em 2019, mais de 10 milhões de jovens com idade entre 14 e 29 anos não concluíram o Ensino Médio. Desse total, 70% eram negros.
Renato se junta a essas estatísticas. Renato é negro. Renato teve o percurso escolar interrompido. Antes do início da pandemia, Renato, que deveria estar no 2º Ano do Ensino Médio, vendia pipocas no sinal de trânsito. Se naquele momento ele estava exposto a abusos e ao risco de ser atropelado, fico imaginando se agora ele está ameaçado também pelo coronavírus. Nesse enredo marcado pela exclusão e pela negação de direitos, perdemos todos: o Renato, a família, a escola, a sociedade e eu.
“Expulsar” a comunidade negra dos bancos escolares vem sendo uma escolha, que contribui para a manutenção das desigualdades que marcam o nosso país. Basta ver os postos de trabalho ocupados pela maioria dos afro-brasileiros. Um olhar atento permite enxergar qual a cor predominante dos vendedores de pipoca, dos flanelinhas, dos engraxates, dos garis, das empregadas domésticas, profissões que exigem menor escolaridade e colocam os indivíduos negros em condição de subalternidade.
A reversão desse quadro perverso, que deveria ser motivo de revolta e de vergonha, exige o compromisso de todos. Deve ser entendido como um compromisso ético e moral. Governos, universidades, organizações da sociedade civil, comunidade escolar e toda sociedade devem se empenhar no combate ao racismo que permeia as instituições de ensino. Racismo que castra sonhos, que interrompe trajetórias, que fomenta o regime de apartheid no qual estamos inseridos.
Nós, enquanto educadores, não podemos silenciar diante da perversidade a que têm sido expostos os estudantes negros. Já disse a pesquisadora Eliane Cavalleiro: “o silêncio escolar sobre o racismo cotidiano não só impede o florescimento do potencial intelectual de milhares de mentes nas escolas brasileiras, tanto de alunos negros quanto de brancos, como também nos embrutece ao longo de nossas vidas, impedindo-nos de sermos seres realmente livres ‘para ser o que for e ser tudo’ – livres dos preconceitos, dos estereótipos, dos estigmas, entre outros males”.
Além de exigir melhores condições de trabalhos e a valorização da nossa profissão, precisamos reivindicar a oferta de cursos de formação inicial e continuada que nos capacitem para a promoção de uma educação antirracista, comprometida com o reconhecimento e com o respeito da diversidade racial que marca o nosso país. Conforme apontou a educadora afro-americana Bell Hooks, o compromisso com a autoatualização deve ser uma prerrogativa em nossa caminhada. Mais do que isso: precisamos ter a coragem de olhar para dentro e perceber o racismo que habita em nós, afinal de contas, fomos educados em uma sociedade extremamente racista, que molda nossa maneira de agir, de pensar, que orienta nossas escolhas, que reverbera em nossas práticas pedagógicas.
Nesse exercício de olhar para dentro é imprescindível interrogar se “Renatos” não passaram por nossas salas de aula. Se estiveram conosco, devemos perguntar qual foi nossa atitude. Sabemos que não é possível mudar o passado, mas é inegável que podemos fazer diferente no presente. Por nós, pelos “Renatos”, pelos meninos e meninas negras, pela sociedade que queremos ajudar a construir.
#Envolverde
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