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por Ladislau Dowbor –
O presente texto não é um programa ou lista de propostas. Antes constitui uma reflexão sobre o futuro da cidade frente às transformações profundas que vive nossa sociedade. No horizonte complexo que se desenha, com tantas tensões políticas, sociais, econômicas e ambientais, vale a pena tomar um pouco de recuo, buscando inclusive repensar as simplificações ideológicas que nos perseguem. O raciocínio econômico, em particular, é amplamente insuficiente para abarcar os desafios do desenvolvimento.
Crises e oportunidades
Vivemos uma convergência de crises. A pandemia ocupa as nossas atenções, mas os desafios são mais amplos. Os dramas ambientais se avolumam em todo o planeta, gerando o que tem sido caracterizado como catástrofe em câmara lenta. Não podemos seguir destruindo o planeta. Um outro eixo crítico é constituído pelas desigualdades que atingiram nas últimas décadas níveis absurdos, com 1% controlando mais riqueza do que os 99% seguintes. No caso do Brasil, um dos países mais desiguais do mundo, o processo tornou-se groteco: 42 bilionários brasileiros aumentaram as suas fortunas em 34 bilhões de dólares entre março e julho de 2020: em plena pandemia, em quatro meses, se apropriaram do equivalente a 180 bilhões de reais, seis anos de Bolsa Família, para 42 pessoas. E são isentos de impostos. (Oxfam, 2020)
Um terceiro eixo crítico é o caos financeiro que impera no país, com juros cobrados das pessoas físicas e das pessoas jurídicas completamente absurdos, dimensão brasileira da financeirização global. Vivemos numa economia profundamente disfuncional em termos éticos, sociais, políticos e econômicos. É o sétimo ano que a economia está paralisada. Assim que a pandemia, ao impactar profundamente a sociedade e a economia, vem apenas tornar mais dramático um processo profundamente deformado. Os absurdos tornam-se mais evidentes, mas também abre-se espaço para mudanças mais profundas, um resgate do bom senso.
Muito pode ser feito no nível de uma cidade, em particular numa metrópole da dimensão e riqueza de São Paulo. Por mais absurdas que sejam as políticas no nível federal, o município tem autonomia e espaço político para traçar rumos que permitam o que hoje se considera como o básico: uma sociedade que seja economicamente viável, mas também socialmente justa, e ambientalmente sustentável, o chamado “triple bottom-line” na esfera internacional. Mas se trata de mudanças estruturais.
O desenvolvimento econômico da cidade de São Paulo deve ser concebido de maneira muito mais ampla do que tradicionalmente tem sido visto como dimensão econômica. Além da atividade empresarial, dos bancos, do sistema tributário, temos de enfrentar a própria lógica do desenvolvimento. Trata-se da dimensão econômica de uma saúde cara e ineficiente nas suas dimensões privadas, de um transporte que além de caro tira horas da vida das pessoas, dos custos que resultam de córregos e rios que são esgotos a céu aberto, do desajuste territorial profundo entre onde se trabalha e onde se mora, da fragilização da educação tão vital para o futuro. Em outros termos, temos de entender os custos que resultam de soluções disfuncionais nos diversos setores de atividade. A falta de sinergia entre as diferentes dimensões das políticas públicas e privadas, bairro por bairro ou no conjunto do território urbano, gera irracionalidades que por sua vez resultam em pouca produtividade social. O desenvolvimento econômico, visto nesta perspectiva, busca resgatar a produtividade sistêmica do conjunto. E o resultado final tem de ser medido de maneira ampla, em termos de bem-estar da população.
A lógica econômica que hoje assola o país, de que enriquecer os ricos irá gerar investimentos, e portanto empregos e prosperidade, precisa ser invertida: direcionar os recursos para assegurar o bem-estar da população é o principal caminho para dinamizar a própria economia. A conta é simples: o PIB da cidade é da ordem de 700 bilhões de reais, o que representa 60 mil reais por ano por habitante, o que equivale a 20 mil reais por mês por família de quatro pessoas. Somos uma cidade rica. O produzimos é amplamente suficiente para assegurar a todos uma vida digna e confortável. Muito mais do que um problema econômico, o nosso desafio é de organização política, ambiental e social. O principal desafio é que os nossos recursos, além depessimamente distribuídos, são muito mal administrados.
A Forbes de 2019 apresenta a concentração de bilionários no Estado de São Paulo, 82 famílias com uma fortuna de 384 bilhões. Os 67 bilionários que moram na cidade de São Paulo têm uma fortuna acumulada que representa, como ordem de grandeza, quatro vezes o orçamento total da cidade, que deve assegurar serviços para 12 milhões de habitantes. Não se trata apenas de fortunas acumuladas no passado. Entre 2018 e 2019, por exemplo, a fortuna de Joseph Safra aumentou em 19 bilhões de reais. A soma do que os bilionários da cidade retiraram do circuito econômico produtivo em 12 meses, sob forma de rendimentos de ações, de juros e outras formas de apropriação financeira, representa mais do que o orçamento da cidade, 70 bilhões de reais. Lembrando ainda que esse aumento das fortunas não é sujeito a impostos: desde 1995 os lucros e dividendos distribuídos são isentos. É uma situação obviamente aberrante, um dreno permanente sobre a economia. Tampouco temos imposto sobre a fortuna. Aqui não se trata de visões ideológicas, de esquerda ou direita, mas de elementar bom senso: atingimos um grau de desigualdade insustentável, e que se agrava.
É essencial a compreensão da dinâmica econômica diferente que gerou a financeirização. Um capitalista tradicional, produzindo por exemplo bens e serviços de consumo corrente, compra equipamentos e matéria prima, contrata trabalhadores, produz sapatos ou outros produtos necessários, e paga impostos, o que permite ao setor público financiar infraestruturas e políticas públicas. O ciclo econômico se fecha, é o chamado círculo virtuoso, equilibrando as necessidades das famílias, das empresas e do setor público. É sem dúvida o caso ainda da imensa maioria das pequenas e médias empresas. Mas no caso das 206 grandes fortunas privadas apresentadas no estudo da Forbes, trata-se de riqueza acumulada a partir de bancos, holdings financeiras, holdings familiares, controle acionário e outros ganhos que resultam de controle financeiro e não de atividade produtiva.
Contam-se nos dedos os que produzem efetivamente algo. Geram poucos investimentos produtivos, poucos empregos, representam um custo de intermediação para os agentes produtivos, e não pagam impostos. Grande parte dos recursos, não contabilizados aqui pela Forbes, encontra-se em paraísos fiscais. A estimativa da Tax Justice Network é que os afortunados do Brasil detêm em paraísos fiscais mais 2 trilhões de reais, um estoque de recursos que representa quase um terço do PIB, dinheiro que nem é investido nem paga impostos.
É o chamado rentismo, hoje denunciado por economistas de linha de frente mundial como Joseph Stiglitz, Paul Krugman, Martin Wolf, Thomas Piketty, Michael Hudson, Ellen Brown, Marjorie Kelly e tantos outros. Este sistema drena a capacidade de compra das famílias, trava o investimento das empresas produtivas, e abre um rombo nas contas públicas através do serviço da dívida. A tendência é mundial. Está baseada na mudança radical do funcionamento da moeda: enquanto até os anos 1980 o dinheiro consistia em notas impressas pela autoridade pública, hoje se trata de dinheiro imaterial, apenas sinais magnéticos, emitidos sob forma de crédito pelos bancos. Sinais magnéticos viajam na velocidade da luz, no espaço do planeta, escapando aos sistemas nacionais de regulação. Temos um mundo econômico dominado pelos sistemas financeiros, que por sua vez se mundializaram, enquanto os sistemas de regulação, nacionais, estão fragmentados e desarticulados.
No Brasil este processo, em que o investimento produtivo perdeu espaço para as aplicações financeiras, adquiriu dimensões absurdas. Hoje 61 milhões de adultos estão “negativados”, com “nome sujo” como são popularmente qualificados. Com as crianças, trata-se de 40% da população brasileira. São pessoas que não conseguem pagar o que já compraram, que dirá comprar mais. O travamento da demanda das famílias pelo endividamento é catastrófico para a economia, pois reduz a produção das empresas, aumenta o desemprego, e reduz os impostos pagos ao Estado, aumentando o déficit. É o sétimop ano em que estamos nesta política de austeridade, com a economia paralisada. Em termos reais, estamos entrando em 2020 no mesmo nível de produção de 2012. Para se ter uma ideia do que representa a agiotagem no Brasil, basta lembrar que os juros para pessoa física nos bancos são da ordem de 3,5% ao ano na França, que os juros sobre o rotativo no cartão são de 21% nos Estados Unidos, comparados com 118% e 320% respectivamente. Os juros para pessoa jurídica na Europa estão na faixa de 2 a 3% ao ano, 50% no Brasil. A financeirização travou a economia.[1]
Sabemos o que funciona: o dinheiro na base da sociedade tem efeitos multiplicadores. A massa da população não faz grandes aplicações financeiras, mal consegue fechar o mês. Políticas redistributivas, elevação do salário mínimo, melhoria da aposentadoria, acesso a bens públicos de consumo coletivo (saúde, escola, segurança etc.) geram demanda na base da sociedade. A demanda que se expande permite dinamizar as atividades produtivas, as empresas passam a ter para quem vender, escoam os seus estoques e passam a empregar. Tanto a expansão do consumo das famílias como a atividade maior das empresas elevam as receitas do sistema público, e a conta fecha. Assegurar mais renda na base da sociedade não gera inflação, pois as empresas no Brasil trabalham com menos de 70% da sua capacidade. Comentando a quebra dos direitos trabalhistas e a lei do teto de gastos, um empresário com bom senso resume o absurdo das políticas de austeridade: “Realmente está mais barato eu contratar, mas para que eu vou contratar se não tenho para quem vender? ”
Não se trata aqui de simplificações teóricas: foi assim, redirecionando recursos para a base da população, que Roosevelt tirou os EUA da crise de 1929 (New Deal), que a Europa assegurou a prosperidade do pós-guerra (Welfare State), é assim que a China dinamiza hoje a sua economia. Funciona em contextos tão diferentes como o Canadá, a Suécia, a Coreia do Sul ou a própria China. O que funciona para a economia é orientá-la em função das necessidades da população. Esta compreensão que hoje se generaliza é que leva um Bill Gates a escrever no seu blog que “deveríamos deslocar uma parte maior da carga tributária para taxar o capital, inclusive elevando o imposto sobre ganhos de capital”.[2]
A importância deste pano de fundo, quando estamos pensando políticas para a cidade de São Paulo, é que no futuro previsível o governo da cidade se dará no contexto de políticas recessivas no plano nacional, mesmo ultrapassando os impactos da pandemia. É um contexto de pouco investimento produtivo, imensos ganhos de rentismo financeiro, fragilização de políticas sociais e desemprego elevado. É possível, no nível municipal, ir contra a correnteza principal? Nesta nota, a ideia é que não só devemos, como podemos. Mas devemos ter plena consciência da dimensão do embate.
Um exemplo interessante é que numerosas cidades nos Estados Unidos, frente aos desmandos ambientais e desigualdade crescente, estão mostrando a sua disposição em tocar políticas que façam sentido para a população local, independentemente das políticas do governo central. O Estado da Califórnia aprovou a criação de bancos públicos municipais para devolver às populações o controle sobre o uso das suas poupanças. A cidade de Nova Iorque anunciou que vai investir em políticas sociais, ambientais e econômicas inclusivas, invertendo as políticas federais. São Paulo, neste ano de eleições municipais, pode constituir um exemplo poderoso de propostas de resgate do bom senso a partir da base da sociedade. Crises geram oportunidades.
Os desafios: reduzir a desigualdade e recuperar o meio ambiente
Não há muito mistério quanto ao que deveria ser feito, e não é o objetivo da presente nota elencar as inúmeras propostas, diferentes segundo os segmentos sociais, mas no conjunto convergentes. Temos um plano diretor cheio de bom senso, temos as referências dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (Agenda 2030) que articula de maneira muito clara os grandes objetivos a serem atingidos. E temos estudos setoriais muito ricos, além de excelentes políticas já bem experimentadas como o SUS, os CEUS, os corredores de ônibus, o Bolsa Família, o Minha Casa Minha Vida e tantas outras que precisam ser resgatadas, expandidas ou melhoradas, segundo os casos. Os travamentos se dão não por falta de propostas, mas pela dificuldade política, financeira e administrativa de sua implementação. Mais do que elaborarmos listas de compras para o eleitorado, buscando que proposta terá maior sucesso nas urnas, temos de refletir melhor sobre os desafios estruturais.
No nosso caso, o desafio principal é de longe o da desigualdade. O desafio é planetário, mas particularmente grave no Brasil, e precisa ser tratado de maneira ampla, na sua dimensão de renda, sem dúvida, mas também de patrimônio e particularmente das diferentes políticas setoriais. Cada área de atividade pode estar reforçando a desigualdade – por exemplo com escolas de elite e fragilização do sistema público, ou com ataques ao SUS relativamente aos planos privados de saúde – ou contribuindo para reduzi-la. A desigualdade é multidimensional, e constitui hoje o principal eixo de desestruturação da sociedade, nos planos da ética, da política e da própria economia.
Em termos éticos, o drama dos pobres é simplesmente escandaloso, e ficamos à procura de adjetivos suficientemente fortes. Em primeiro lugar, os pobres não são responsáveis por sua pobreza: não são eles que montaram ou reproduzem o sistema. Nos 105 milhões que constituem a nossa força de trabalho, apenas 33 milhões, menos de um terço do total, têm um emprego formal com carteira assinada. Na informalidade temos 37 milhões de pessoas, com renda da ordem da metade de quem tem um emprego formal, e temos 13 milhões de desempregados, totalizando 50 milhões de pessoas, quase a metade da força de trabalho, em situação precária ou dramática. Que dizer então da situação das crianças que sofrem numa pobreza que não criaram? Não é a falta de vontade de trabalhar e de progredir na vida que causa o problema, e sim falta de oportunidades. Jogar nas costas da massa da população a responsabilidade pela sua pobreza não faz sentido. Manter este nível de desigualdade numa cidade com a riqueza de São Paulo é simplesmente absurdo. É básico, algumas coisas não podem faltar a ninguém. No nosso caso, está inclusive inscrito na Constituição.
A dimensão ética é igualmente impressionante quando se trata dos muito ricos. Enquanto técnicos, pequenos e médios empresários e um grande número de gestores que constituem a classe média são sem dúvida produtivos, os donos das grandes fortunas, conforme vimos, são essencialmente improdutivos, rentistas que drenam a economia, e que se apropriam da política para montar um quadro institucional que os isenta de impostos, autoriza a contaminação química dos alimentos, legaliza um sistema geral de agiotagem e assim por diante. Podíamos criticar capitalistas produtivos por explorarem os trabalhadores, mas produziam e pagavam impostos. Os gigantes corporativos atuais não fazem nem uma coisa nem outra. Nesta era em que tanto se fala em merecimento, a perda de legitimidade dos mais ricos torna-se óbvia. A preocupação ética na economia, que já foi banida em nome de modelos tecnocráticos, está voltando com força, como se percebe com o apelo do Papa Francisco, e com as recentes tomadas de posição de 181 das maiores corporações norte-americanas e de 130 dos maiores bancos do mundo. Sem uma base elementar de valores, a sociedade simplesmente não funciona. [3]
Em termos políticos, é a própria organização da sociedade que é atingida. A realidade é que a partir de um certo nível de desigualdade, as sociedades se tornam ingovernáveis. Democracia política, para funcionar, precisa de uma base de democracia econômica. As manifestações que encontramos hoje em tantos países, a eleição de populistas que se proclamam contra a política, a desorganização planetária do funcionamento democrático – são manifestações de uma pressão que se torna insustentável. Nos rincões mais recuados, as pessoas sabem que poderiam ter acesso a serviços decentes de saúde, a salários mais dignos, a melhores escolas para os seus filhos. Já não se fazem pobres como antigamente, passivos e desconhecedores do que lhes é negado. Os desafios se tornaram simplesmente dramáticos, e achar que políticas progressistas são questões para esquerdas que gostam de pobres reflete ignorância ou profunda cegueira quanto ao que está acontecendo no mundo. Não se trata de esquerda ou direita, e sim de elementar decência humana, e de um mínimo de realismo. O mundo político está mudando.
Mas é no plano econômico que a manutenção e aprofundamento da desigualdade se torna particularmente paradoxal, pois a redução da desigualdade constitui o caminho real para a dinamização das atividades econômicas, expansão do emprego, e redução do déficit nas contas públicas. Travar o consumo popular, num país onde as empresas trabalham com menos de 70% da sua capacidade por falta de demanda, denota apenas a persistência de uma visão ideológica elitista. Por sua vez, é essencial a compreensão de que a inclusão econômica e redução das várias formas de desigualdade constituem o principal potencial de dinamização econômica da cidade. As imensas insuficiências de milhões de pessoas nesta cidade rica podem constituir o principal problema, mas na realidade constituem um horizonte de expansão, um conjunto de oportunidades. Cabe à administração pública dinamizar este processo inclusivo. Temos milhões de pessoas subutilizadas, empresas com capacidade produtiva parada, e imensas necessidades da população, enquanto os recursos financeiros são aplicados em papéis que alimentam rentistas. Pensar a reorientação necessária não exige teoria econômica complexa. Trata-se de bom senso. Enfrentar a desigualdade significa ligar o principal motor da economia, que é a demanda popular.
O segundo grande desafio, ao lado da desigualdade, é o drama ambiental. Temos de elevar drasticamente o nível de sustentabilidade ambiental da cidade. Trata-se evidentemente de reduzir a emissão dos gases de efeito estufa, de controlar as partículas que geram doenças respiratórias em massa, de resgatar os rios e córregos contaminados, de organizar a reutilização das águas pluviais e de ampliar o saneamento básico, de promover a adoção de painéis solares que irão economizar energia, de elevar radicalmente a arborização urbana, de promover a economia de proximidade que reduz a quilometragem dos produtos e assim por diante. A lista de iniciativas necessárias é longa e diferenciada, mas o essencial é que se trata de medidas testadas e aplicadas em numerosas experiências tanto no Brasil como em outros países. E são medidas que não custam mais, pelo contrário, economizam recursos. Um real investido em saneamento básico, por exemplo, economiza quatro reais na área da saúde. Ou seja, trata-se de políticas que dinamizam o desenvolvimento econômico ao mesmo tempo que melhoram as condições de vida da população. O meio ambiente não é apenas natureza, é a base para a nossa qualidade de vida. Termos ruas arborizadas, rios e riachos limpos e ar respirável não constituem exigências excessivas.
Estamos aqui de certa maneira restabelecendo uma visão básica: desenvolvimento econômico socialmente justo e ambientalmente sustentável gera prosperidade econômica e qualidade de vida, além de empregos. A divisão do bolo é que gera o seu crescimento.
Os meios: intermediação financeira, sociedade do conhecimento, inclusão digital, inclusão produtiva
Muitas administrações se contentaram em construir obras de grande visibilidade – viadutos impressionantes constituem uma excelente opção, geram votos e propinas – mas no essencial apenas adiam o enfrentamento dos desafios da cidade, ou se contentam em usar a prefeitura como trampolim político. Estamos aqui descrevendo uma outra atitude, uma visão da cidade como menos desigual e conflitiva, culturalmente mais solidária, mais harmonizada nos seus territórios, mais produtiva em termos econômicos. Como vimos, não se trata de objetivos conflitantes. Tratar os nossos esgotos e descontaminar os nossos rios geram bem-estar para a população, melhoram o meio-ambiente, e reduzem custos. Em particular, constituem políticas estruturalmente transformadoras. Gerar uma cidade próspera e solidária constitui uma proposta civilizatória, e não apenas mais um polo político.
Resgatar o controle dos nossos recursos financeiros
O ponto de partida é, evidentemente, o resgate do controle dos nossos recursos financeiros. Como ordem de grandeza podemos assumir que pelo menos quatro em cada dez paulistanos se encontram não só endividados, mas presos na máquina de refinanciamento de juros sobre juros, dívida sobre dívida, que faz com que grande parte da renda suplementar que uma família possa conseguir se transforme em juros pagos aos bancos. Os recursos públicos liberados para enfrentar a pandemia, 1,2 trilhão de reais, 16% do PIB, são elevados, mas apropriados pelos bancos, e o pouco repassado para famílias e para empresas vem com juros de agiotas.[4] Boa parte da ajuda emergencial às famílias volta para os bancos sob forma de juros. Trata-se aqui do principal dreno da capacidade de compra da população de renda baixa e média, e que explica em grande parte o fato das empresas subutilizarem a sua capacidade produtiva e o desemprego se manter tão elevado, independentemente da pandemia.
Com a liquidação em 2003 do artigo 192º da Constituição, que limitava a taxa de juros a 12% ao ano mais inflação, a agiotagem se generalizou tanto nos bancos como no grande comércio e nas empresas de cartões de crédito. Ou seja, com essa emenda constitucional, a agiotagem tornou-se legal. Vimos acima como funciona esse processo de esterilização das poupanças da população. O que aqui trazemos, é a centralidade do resgate, por parte da população, do controle dos seus recursos.
Lembremos que na Alemanha, por exemplo, as famílias não colocam as suas poupanças em bancos, mas sim em caixas municipais de poupança, as Sparrkassen, o que permite que o dinheiro seja utilizado em projetos do próprio município, em vez de se escoar em juros que alimentam rentistas financeiros. A China se dotou de um sistema extremamente descentralizado que assegura o investimento das comunidades no seu próprio desenvolvimento. Vimos acima que a Califórnia autorizou recentemente a criação de bancos públicos municipais. Na França, ONGs de intermediação financeira asseguram outra modalidade das chamadas finanças de proximidade, em que bairros ou núcleos urbanos os mais variados podem intermediar o financiamento de iniciativas comunitárias, cobertas com seguro do Banque de France. Na Holanda, quando uma comunidade levanta por exemplo 25 mil euros para financiar uma iniciativa local, o governo pode aprovar o projeto e completar os 100 mil necessários. Constataram que projetos de origem comunitária co-financiados são simplesmente mais produtivos.
Os exemplos são inúmeros, desde o Grameen Bank de Bangladesh até as cooperativas de crédito na Espanha ou na Itália e assim por diante. O fato é que qualquer cidade que quer ter um desenvolvimento equilibrado precisa ter um mínimo de controle sobre os seus recursos, tanto os privados, como evidentemente os públicos. Aqui vale lembrar que na Suécia mais de dois terços dos recursos públicos são diretamente repassados para a base da sociedade, enquanto no Brasil o dinheiro dos nossos impostos é essencialmente negociado nos ministérios. Esse ponto é chave: somos um país imenso, com 5.570 municípios, e é absolutamente inviável órgãos centralizados conhecerem a complexidade e diversidade de necessidades em regiões tão diferentes. Tudo vira negociação política. A China, lembra bem Kroeber em estudo recente, tem um sistema politicamente centralizado, mas rigorosamente descentralizado em termos de gestão, inclusive mais do que a Suécia.[5]
Quais as soluções brasileiras para viabilizar o financiamento das políticas municipais? Temos hoje um importante setor de cooperativas de crédito, e estão se desenvolvendo rapidamente os bancos comunitários de desenvolvimento, hoje há mais de 115, emitindo inclusive a própria moeda digital. Já temos exemplos de OSCIPs de intermediação financeira. No caso de São Paulo, com os 70 bilhões de reais de orçamento da cidade, e 120 mil funcionários da administração direta, e 12 milhões de habitantes, é evidente que se justifica amplamente ter um banco próprio, resgatando o controle dos recursos, permitindo linhas de crédito sem agiotagem, e assegurando aos munícipes depósitos e aplicações que permitam financiar atividades úteis para a cidade.
Trata-se, como escreve Ellen Brown, uma das promotoras das finanças locais nos Estados Unidos, de assegurar “que a liquidez passe por cima da economia financeira, contorne o sistema bancário, e flua para a economia real.”[6] No conjunto, a produtividade do sistema financeiro deve ser medida em quanto ela dinamiza a economia real, e não quanto ela extrai. Onde funciona, a economia local exerce o controle dos seus próprios recursos. No nosso caso, com 85% do sistema bancário nas mãos de 5 instituições, e sem regulação da agiotagem pelo Banco Central, o resultado é a paralisia econômica que constatamos, inclusive antes da pandemia. Com as novas tecnologias, moedas virtuais, e o ressurgimento das políticas locais de desenvolvimento, abrem-se novos caminhos.
Organizar a inserção na sociedade do conhecimento
A cidade de São Paulo não é mais uma cidade de forte base industrial, inclusive esta dimensão tende a se reduzir no pouco que dela resta. Qualificar a base econômica da cidade como “economia de serviços” pouco ajuda, pois o conceito de “serviços”, definido residualmente como não-agrícola e não-industrial, leva a que todo o demais seja colocado sob a rubrica de serviços, com atividades tão diferentes como o consultor da IBM, o pastor ou o barbeiro. Na Grã-Bretanha se incluiu recentemente a prostituição e o negócio de drogas como serviços, buscando arredondar o PIB. Na realidade, um conceito residual significa “outros” em termos estatísticos, e quando, numa cidade como São Paulo, “outros” representa mais de 80% das atividades, temos um problema metodológico. O conceito é geral demais para ser útil, e precisamos ir para os componentes de maneira mais detalhada.
Muito mais útil, em particular se queremos pensar o futuro de uma cidade com São Paulo, é estudar os potenciais de desenvolvimento no plano das novas tecnologias: a economia está se tornando imaterial. Um celular pode ter alguns porcentos de trabalho físico e de matéria prima, mas o essencial do seu valor é o conhecimento incorporado. O Uber é apenas uma plataforma, a venda das suas instalações pouco renderia. Mesmo a pequena agricultura urbana ou peri-urbana, que tanto se desenvolve no mundo, depende muito de análise de solo, análise hídrica, seleção de sementes e outras tecnologias que avançam rapidamente. Neste sentido, não desaparece a produção física, como o celular, o taxi, ou o legume orgânico, mas o componente valor da produção passa a depender crescentemente das tecnologias incorporadas. A economia mundial já teve a terra como principal fator de produção, e a máquina na fase industrial, mas hoje o principal fator de produção é o conhecimento. Não há dúvida que uma cidade-mundo como São Paulo, com a sua base científica, suas 570 faculdades, e a presença de tantas conexões internacionais, tem o seu futuro desenhado neste campo.
O fato do principal fator de produção, o conhecimento, ser um fator de produção imaterial, constitui um deslocamento profundo em termos de como concebemos o desenvolvimento econômico. No caso dos bens materiais, da máquina por exemplo, são bens chamados de “rivais”, pois se uma pessoa a tem, outra não pode tê-la simultaneamente. O meu relógio de pulso é simplesmente meu. No caso do conhecimento, trata-se de bens não-rivais. Eu passar um conhecimento para alguém não me priva dele. Em outros termos, o conhecimento, como bem não-rival, pode ser generalizado no planeta sem custos adicionais. A tecnologia tem o imenso potencial de uma apropriação generalizada dos conhecimentos mais avançados. O estudo de Jeremy Rifkin, A Sociedade de Custo Marginal Zero, permite entender o futuro que se abre. A guerra pela propriedade intelectual continua, sem dúvida, mas é hoje entendido que a livre circulação do conhecimento gera efeitos econômicos multiplicadores incomparavelmente superiores aos que são gerados pelos complexos sistemas de patentes e copyrights.[7] Enquanto nos fixamos apenas no potencial das startups, deixamos frequentemente de ver o imenso universo de construção colaborativa do conhecimento que se gerou no planeta, e assegura a pesquisa fundamental e a formação generalizada de pesquisadores que inclusive permitem que haja base científica para as startups.
O trabalho de Elinor Ostrom e de Charlotte Hess, Entender o Conhecimento como Bem Comum, ajuda muito no redirecionamento das nossas visões de São Paulo para o futuro.[8] Elinor Ostrom, em particular, recebeu o seu prêmio “Nobel” de economia em função dos estudos sobre a administração dos bens comuns, como água, por exemplo, mas coloca o conhecimento (knowledge) no mesmo plano. A impressionante transformação tecnológica do planeta constitui um processo multipolar de avanços nos mais diversos campos, cada vez mais baseados em sistemas colaborativos em rede. O papel do setor público na dinamização do processo e na generalização dos resultados é fundamental, como vemos no excelente O Estado Empreendedor, de Mariana Mazzucato.[9]
Uma prefeitura de uma cidade das dimensões demográficas e econômicas como São Paulo pode pensar grande em termos científico-tecnológicos, e em todo caso o seu futuro precisa ter esta visão dos rumos do desenvolvimento. É capitalizar o seu imenso potencial de construção colaborativa e interativa do conhecimento. Não à toa o MIT trabalha com Open Course Ware (OCW), a China com China Open Resources for Education (CORE), sistemas de acesso aberto. O mundo do conhecimento funciona com outras dinâmicas.
Inclusão digital e plataformas de economia colaborativa
A economia do conhecimento é fundamentalmente imaterial. Registra-se em sinais magnéticos que navegam nas ondas eletromagnéticas em torno do planeta, em volumes praticamente ilimitados e com velocidades que tornam o espaço secundário. Space is Dead, o espaço morreu, escrevem. A junção da economia imaterial com a conectividade planetária está no centro das transformações de como se reorganiza o desenvolvimento econômico e social. O dinheiro, apenas uma informação registrada em sinais magnéticos, navega no planeta instantaneamente, no chamado High Frequency Trading, deixando os bancos centrais as ver navios. Empresas americanas deslocam parte do trabalho para a Índia, pouco importa se o computador da secretária está na sala ao lado ou na Ásia, conquanto as pessoas dominem o inglês e sejam mais baratas. As pesquisas online estão substituindo as agências de viagem, os softwares substituem o funcionário do banco, mandam na economia e crescentemente na política não as empresas industriais mas as plataformas que tudo conectam. O deslocamento é sísmico. É o modo de produção capitalista que está se transformando.[10]
Neste quadro, quem não está conectado – e conectado com qualidade e velocidade, e com capacitação correspondente – está fora do mundo. A inclusão digital está rapidamente se tornando condição prévia de qualquer inclusão produtiva, e de certa forma de presença social. Inúmeras cidades do mundo asseguram o sinal de internet de qualidade e gratuito ou quase gratuito, em todo o território. Na modesta cidade de Piraí, no Estado do Rio de Janeiro, o sistema já existe há anos, graças à colaboração com Franklin Coelho da Universidade Federal Fluminense. Mas no Brasil, de forma geral, temos curiosamente o sinal gratuito apenas em alguns aeroportos, enquanto o oligopólio de telefônicas cobra preços absurdos, em mais uma manifestação de rentismo improdutivo. Assegurar o livre acesso ao sinal de qualidade no conjunto do território urbano é uma pré-condição para se assegurar a inclusão digital. Trata-se de iniciativa simples, barata, e de imenso impacto. E abre a possibilidade de inventar atividades dos mais variados tipos, dinamizando a economia pela base. Na situação atual, com a pandemia, como vai estudar a criança que não tem acesso de qualidade à internet?
A gratuidade ou pagamento simbólico justificam-se plenamente. Não pagamos para andar na rua, ainda que os custos de construção e manutenção sejam elevados. Nas infovias, considerando que as ondas eletromagnéticas são da natureza e gratuitas, é natural que a circulação seja também livre e gratuita. Da mesma forma como a gratuidade de circulação nas ruas viabiliza empreendimentos comerciais, a gratuidade da circulação de informação deverá permitir que mais pessoas criem aplicações comercialmente interessantes. O caráter público, gratuito e universal do acesso à internet é condição básica para a dinamização de um conjunto de atividades econômicas na era digital, da economia do conhecimento. Aqui não se trata apenas do Uber ou do Airbnb que tanto aparecem na mídia, e que aguardam formas de regulação adequadas, mas de um conjunto de iniciativas colaborativas como crédito comunitário, compras diretas do produtor e semelhantes, apontando para a possibilidade de ultrapassar um conjunto de intermediários e atravessadores que travam a economia. Uma ótima sistematização das transformações pode ser encontrada no livro de Arun Sundararajan, A Economia Compartilhada, editado pelo Senac.[11]
A economia imaterial e a conectividade planetária foram – e continuam sendo – em grande parte controladas pelas grandes corporações digitais, GAFAM no Ocidente, BAT na China, mas também pelos gigantes financeiros, ou intermediários mundiais de commodities. Mas é precisamente a democratização digital que irá permitir que as pessoas se reapropriem dos seus espaços, como já acontece com a versão local do Uber na zona sul de São Paulo – escapando ao pedágio do Uber oficial – ou ainda com os criados milhares de pontos de cultura em que a criatividade pode se expandir sem esperar uma portinha estreita no que eram as empresas de intermediação. Ou seja, o mesmo processo que gerou o poder das plataformas e a economia de pedágio que trava o desenvolvimento, pode ser invertido para dinamizar iniciativas de qualquer grupo ou comunidade. Exemplos não faltam, trata-se de abrir espaços para que se multipliquem e adquiram escala.
Inclusão produtiva: a subutilização da força de trabalho
Não é mistério que a relação de trabalho está mudando, deslocando o conceito de emprego formal estável, aprofundando o desemprego tecnológico e multiplicando os chamados Gig Jobs, trabalhos informais, pontuais sob encomenda, atingindo hoje inclusive o trabalho de professores. Defender os sistemas antigos de proteção, conquistados com muitas lutas, tem-se tornado cada vez mais difícil porque as bases dos processos produtivos estão mudando, precisamente no quadro da economia imaterial. Os relatórios do Banco Mundial e da OIT (Organização Internacional do Trabalho) sobre as transformações do mundo do trabalho trazem dados, mas no essencial constatam a dificuldade de saber a que ponto ou em que ritmo novas atividades e outras relações de trabalho irão compensar a substituição do trabalhador pelas tecnologias, algoritmos e inteligência artificial. O essencial é que estamos sim em fase de transição, e não basta defender os direitos adquiridos em outras fases. O que está se desenrolando não é alguma “indústria 4.0”, ou seja uma etapa tecnologicamente mais avançada do capitalismo industrial que conhecemos: trata-se de um sistema estruturalmente diferente.
No nosso caso a situação já é crítica, independentemente das transformações geradas pela revolução tecnológica. O Brasil tem 210 milhões de habitantes, cerca de 140 milhões em idade de trabalho, e 105 milhões na força de trabalho, ativos ou desempregados. Mas nessa força de trabalho encontramos apenas, como vimos, 33 milhões de empregados formais. Os informais (37 milhões) somados aos desempregados (13 milhões) representam como vimos praticamente a metade da nossa força de trabalho. Assim, independentemente das transformações tecnológicas, a nossa baixa produtividade sistêmica, como país, é dominantemente causada por uma imensa subutilização da nossa força de trabalho. É um país com tanta coisa para fazer, e tanta gente subutilizada. Nosso problema não é falta de recursos financeiros, nem de tecnologias, nem de saber o que deve ser feito: é um problema de organização política, social e administrativa.[12]
Independentemente das opiniões políticas sobre a China, o fato deles orientarem os seus recursos financeiros para o investimento produtivo e não para o rentismo financeiro, e de deixarem cada cidade se administrar de maneira descentralizada, em função das suas necessidades diferenciadas e sem precisar recorrer a tantas hierarquias administrativas, assegura um desenvolvimento econômico extremamente dinâmico. O governo central define grandes rumos, mas a gestão é rigorosamente local. Juntar recursos financeiros, tecnologia e mão de obra, e articulá-los em função das necessidades diferenciadas de cada cidade, simplesmente funciona. Emprego e desenvolvimento econômico se conseguem investindo no que é necessário para as comunidades.
No caso de São Paulo, as necessidades são escancaradas, apresentadas em detalhe e com teatralidade em todas as campanhas eleitorais, nas áreas da educação, da saúde, da segurança, da mobilidade urbana, do desemprego e assim por diante. É importante apresentar o que é necessário. Mas em termos de progresso real, precisamos redefinir a governança do sistema, o processo decisório. Em termos de inclusão produtiva, os eixos de ação são claros: o apoio à pequena e média empresa, principal empregador no setor privado; a generalização da cobertura de internet e apoio financeiro e técnico para que o empreendedorismo individual ou de grupos seja efetivo, e não um disfarce; a generalização de iniciativas locais, bairro por bairro, em particular nas periferias, de melhoria das condições de habitação; e a expansão de políticas sociais, como educação, saúde, cultura, esporte, segurança e outros, hoje empregadores mais importantes do que a indústria.
Em outros termos, a existência de tantas coisas a fazer, e de tanta mão de obra parada, precisa ser transformada em oportunidades de transformação econômica e social. Em termos de organização, isso envolve iniciativas descentralizadas, com protagonismo das próprias comunidades. Temos inúmeros exemplos de políticas municipais que funcionam quando se estrutura uma governança descentralizada e participativa. Na Índia os municípios são obrigados por lei a desenvolver projetos intensivos de mão de obra, devendo assegurar um mínimo de 150 dias de trabalho a qualquer adulto interessado, com uma remuneração básica. Exemplos não faltam no Brasil, como a Operação Praia Limpa em Santos. Há inúmeras iniciativas intensivas em mão de obra que esperam o pequeno apoio organizacional, técnico e financeiro que as viabilize. Mas o essencial mesmo é que cada um possa encontrar o seu lugar. Celso Furtado escreveu com razão que quando uma pessoa está fora do sistema produtivo, qualquer iniciativa é lucro.
Governança participativa
Os discursos de boa vontade política ficam no vazio se não enfrentamos o processo decisório, a chamada governança do sistema. No elenco de políticas que precisamos implementar para equilibrar a cidade, entra em cada momento a pergunta sobre a viabilidade. Um banco municipal é necessário, como são necessários bancos comunitários de desenvolvimento nos bairros, mas quais serão as resistências? A reforma tributária é necessária, mas são os ricos que têm o comando do Congresso: podemos pelo menos ter um IPTU razoavelmente progressivo na cidade? Paris e outras cidades re-municipalizaram o controle da água, será viável uma medida semelhante em São Paulo? Por lei, a gestão da água é uma concessão municipal, entretanto a Sabesp se interessa mais em vender água e transferir recursos para os acionistas no exterior do que investir em saneamento básico, sem falar dos 30% da água que perde porque não investe na infraestrutura. Entre o bem público e o interesse privado, em grande parte se trata de relações de força. E as propostas deverão ser passadas por esse filtro de viabilidade política.
O básico, no entanto, é que onde as cidades funcionam se trata de sistemas descentralizados, participativos e mais transparentes. Isto permite que as ações se ajustem a desafios diferenciados segundo as localidades e o tipo de atividade. Uma pesquisa realizada em escala nacional, mas centrada na dinamização dos municípios, identificou 8 eixos de ação: resgate do controle financeiro; generalização do acesso à tecnologia; inovações institucionais (conselhos locais de desenvolvimento, por exemplo); elaboração de um sistema transparente de informação sobre a cidade; geração de instrumentos ágeis de comunicação que assegurem transparência, e não apenas propaganda; parcerias com universidades e centros de pesquisa para formar capacidade de gestão comunitária; priorização da dimensão de geração de emprego e renda nas diferentes políticas; e inserção da dimensão ambiental no conjunto das iniciativas. São 89 propostas práticas publicadas pelo Sebrae no relatório de pesquisa Política Nacional de Apoio ao Desenvolvimento Local.[13]
O central é que temos de assegurar que as prioridades efetivas da população possam vir à tona, e influir no processo decisório da cidade. Não há mistério quanto à forma de se chegar a isso: a população tem de estar devidamente informada, e tem de dispor de canais de pressão sobre os processos decisórios. A Suíça tem 8,5 milhões habitantes, é dividida em 26 Cantons, e tem 2.222 municípios. Mal comparando, São Paulo, com suas 32 subprefeituras, cada uma administrando em média 375 mil habitantes, – é o máximo que conseguimos de descentralização – é uma cidade prisioneira de negociações politiqueiras, moeda de troca de “altos interesses” divorciados das necessidades efetivas do seu desenvolvimento. Não só a racionalidade administrativa exige sistemas muito mais descentralizados, como as novas tecnologias e a conectividade o permitem.
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A cidade de São Paulo precisa de um choque de modernidade, de uma gestão que resgate valores humanitários básicos, que se dote das tecnologias mais avançadas de gestão, e que, em termos de desenvolvimento econômico, acompanhe as novas visões democráticas e transparentes que tantas cidades no mundo estão adotando. São Paulo não precisa a cada eleição ficar com a esperança de que vai aparecer um bom governante: a cidade precisa se apropriar do seu governo. Uma democracia só funciona com rédeas curtas. É perfeitamente viável. A pandemia que atinge a sociedade constitui também uma oportunidade de endireitar os rumos.
Ladislau Dowbor é professor titular de economia da PUC-SP, e consultor de várias agências da ONU. Autor de mais de 40 livros e de numerosos artigos técnicos, disponíveis online em www.dowbor.org. Contato ldowbor@gmail.com
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