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Era uma vez uma rua tranquila que fica num bairro outrora muito nobre, numa cidade outrora maravilhosa. A rua tranquila era tão calma que afastava pessoas mais elétricas, executivos e executivas plugadas o tempo todo em dois ou três celulares, aqueles que trabalham 24/7, que caminham com um dispositivo no ouvido para ouvir o de sempre, sem se abrir ao novo. Porque na rua tranquila, se você andasse prestando atenção, podia ouvir passarinhos ao monte, latidos, miados, até mesmo a brisa tocando de leve as folhas. E não passava um quarteirão sem se dar um tchau para alguém do outro lado, sem se desejar bom dia, boa tarde, boa noite. A rua tranquila era uma uma rua que convidava ao contato real. Não virtual.
Aos sábados, porém, a rua tranquila se transformava por causa da feira livre. Tinha gente que gostava, tinha gente que não gostava. Aqueles que faziam contato achavam que a feira dava uma chance a mais de afeto. E de escolher seus produtos como se estivessem escolhendo na horta de casa. Os mais ansiosos viam sujeira e bagunça, se incomodavam até com o grupo de chorinho que enchia a praça de som e gente.
A feira foi ficando famosa. E atraindo pessoas que vinham de outros bairros até. Em vez de a rua ser ocupada só por comerciantes de banana, maçã, laranja, outras frutas e legumes, vieram também os vendedores de produtos prontos, feitos artesanalmente. Afinal, aquele era um espaço privilegiado por pessoas mais sensíveis, que sabem muito bem distinguir o gosto de um produto feito por mãos daquele outro, feito por máquinas. E a feira foi ficando mais e mais cheia.
Até que um dia, estacionou ali um caminhão, desses que recebem o nome estrangeirado de food truck, mas que não passa de um velho e bom ambulante sobre quatro rodas. Assim que parou, abriu a lateral e se transformou numa lanchonete, vendendo comida japonesa. O povo, no início, se espantou. Mas, como a rua é ocupada por uma maioria de democratas, todo mundo pensou: “Ora, é mais um a tentar se safar como pode dessa crise financeira que assola o mundo, o país, o estado, a cidade”. E teve quem até gostou, indicou para amigos. E a feira foi ficando ainda mais cheia.
O caminhão ambulante que vende comida costumava chegar cedo e ir embora às 15h, quando a feira precisa acabar, segundo as leis que buscam dar alguma organização aos espaços urbanos que são de todos.
E veio a pandemia. Nos primeiros dias, todo mundo ficou com muito medo, a rua se vestiu de cinza. Usando máscaras fica difícil desejar bom dia, boa tarde, boa noite. E era preciso respeitar o que diziam os cientistas, os médicos: “Vamos ficar isolados porque assim a doença não se alastra de uma vez só. Não temos camas em hospitais para atender todo mundo”. Mesmo achando um absurdo que os impostos pagos não tenham sido empregados como deveriam, todo mundo na rua obedeceu. E, pela primeira vez em décadas, houve um sábado sem feira na rua.
Mas o tempo foi passando, a pandemia não. O dirigente maior do país decidiu não acreditar na Ciência e mandou todo mundo ir para a rua, ordenou que o comércio se abrisse, que os ambulantes vendessem porque senão o país ia quebrar economicamente. Como se, antes, a gente já não estivesse numa crise de causar insônia em toda gente que não pertence à classe mais rica.
E, pouco a pouco, a rua tranquila foi se enchendo de novo. Aqui e ali soubemos de casos de vizinhos que se foram, levados pela Covid. Lamentávamos, sacudindo a cabeça, tristonhos, sem graça ou jeito de continuar, mas a vida quer passar, fazer o quê? Uns e outros retomaram suas rotinas e a pandemia virou assim um dente quebrado na boca, que a gente só se lembra quando passa a língua sobre ele.
O desemprego aumentou e mais pessoas precisaram vir para a rua tentar ganhar algum dinheiro vendendo coisas. Bolos, tortas, brigadeiros, pães, plantas, roupas velhas, artesanatos, de tudo tinha um pouco na feira dos sábados. Os moradores da ruazinha outrora tranquila iam se acostumando, afinal era um dia só, mas sem muito jeito de gostar. Até porque, mesmo com tantos avisos de que era preciso evitar aglomerações por causa da pandemia, não tinha como botar na cabeça dos feirantes que era preciso usar máscaras, mandar fazer fila, nada disso. A feira voltou a ser como antes, só que mais cheia e bagunçada.
E o caminhão que vende comida, ah este aí exagerou na dose do desrespeito a todos os avisos. Sem obedecer a nenhuma regra, espalhou cadeiras, mesas, vendeu bebidas a toda gente. E, como se sabe, muita gente decidiu aderir ao negativismo ignorante do mandatário mor, e mandou às favas até o uso de máscaras. O caminhão ambulante, assim, começou a fazer tanto sucesso que seus clientes vinham de longe. Pouca gente da ruazinha tranquila frequentava.
Em vez de fechar as portas e recolher tudo às 15h, como manda a lei, o dono do caminhão encheu os olhos com a chance de ganhar mais e mais. E passou a fechar tarde da tarde, só lá pelas 18h! E a paciência dos moradores foi se acabando, todo mundo passou a olhar com raiva o caminhão ambulante que só quer acumular mais e mais dinheiro, sem ter respeito pelos outros. Quando se vai, deixa ainda um cheiro horrível de peixe cru na ruazinha outrora tranquila.
Esta história ainda não acabou, mas serviu para me ajudar a pensar sobre o tal “mundo que queremos”, slogan adotado, no momento, por dez entre dez economistas, financistas, chefes de nação e empresários. Tanto que já está tudo pronto para a macro reunião que acontece todos os anos na cidade suíça de Davos, na Suíça, e que se chama World Economic Forum (WEF). O tema da reunião de janeiro de 2021, que vai acontecer online, será: “O grande reinício”, ou “The Great Reset”.
Fico animada com a possibilidade de se pensar em virar a chave, em recomeçar tudo sob novos parâmetros, novos pensamentos. Um refresh no mundo, é do que precisamos. Estamos quase tão machucados e feridos quanto estava toda gente no fim da II Guerra, tempo em que as nações ricas lideraram outro movimento parecido, chamado Breton Woods, que definiu as regras para a economia global na época.
Mas… se o dono do caminhão ambulante que vende comida não conseguir pensar de outro jeito. Se os clientes dele não olharem para longe do próprio umbigo, vai ser difícil pensar num outro recomeço. O ideal? Ah… o ideal seria que o caminhão ambulante chegasse cedo, saísse cedo, obrigasse toda gente a usar máscaras e não pusesse mais do que duas ou três mesas para aqueles que quisessem descansar o esqueleto por poucos minutos ao beber sua cerveja.
O ideal também seria que o caminhão ambulante, mesmo sem ser obrigado pela Prefeitura, trouxesse pás, desinfetantes, rodos e se pusesse a esfregar o chão que lhe possibilitou ganhar tostões. E olhasse o entorno, e pensasse de forma educada e gentil naquela gente que ali mora há décadas e décadas, gostando de poder dividir seu espaço com pessoas que o respeitam. Simples assim.
Isto, simples. Estou simplificando algo muito, muito maior. Estou usando uma metáfora, é claro. Mas, no fundo, o micro exemplo que dei pode ser pensado no macro. Se os líderes em Davos começarem a escrever seu novo tratado de convivência humana com a palavra respeito, já podemos nos sentir contemplados.
Amélia Gonzalez – Jornalista sênior especializada em desenvolvimento sustentável. Acredito que as mudanças climáticas e a desigualdade social são os dois maiores desafios da humanidade hoje. Empresas, sociedade civil e governos precisam agir juntos para mudar paradigmas de produção e consumo. Gosto muito de compartilhar meu conhecimento a este respeito, tanto em palestras, reuniões, mesas de debate quanto em salas de aula.
Conheça mais trabalhos da jornalista Amélia Gonzalez em seu blog Ser Sustentável
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