Uma franco brasileira na conservação da história da humanidade - Ecoo

Uma franco brasileira na conservação da história da humanidade

por Samyra Crespo – 

Você já ouviu falar do sitio rupestre mais importante do pais?

Muitas mulheres valorosas se batem pela conservação dos recursos naturais e pelo patrimônio histórico brasileiro. Nem todas nasceram aqui. Algumas pagaram com a vida, como a freira Doroty Stang, covardemente assassinada na Amazônia.

Mas uma especialmente chama atenção pelo exemplo pessoal e pela incrível trajetória de perseverança e também pelos resultados alcançados: Niède Guidon.

Niège Guidon

Conheci pessoalmente esta cientista nascida no Brasil e com fortes vinculações com a França onde estudou e morou – em 2011. Arqueóloga, ativista, criadora do nosso Parque Nacional Serra da Capivara, área adstrita ao município de Raimundo Nonato (PI) ali estive a primeira vez em companhia de Rômulo Melo, então presidente do Instituto Chico Mendes. Meu querido amigo, saudoso Rômulo Melo, funcionário de carreira do Ibama, falecido precocemente há poucos anos.

Havia um treinamento de guardas florestais e conselheiros do Parque e fui, a convite dele, ministrar uma palestra.
Eu a vi à noite, em meio à uma confraternização. Ela chegou sem ares de simpática e começou a fazer reivindicações à autoridade presente. Rômulo tudo escutou sem interromper. A mulher grisalha e gordinha à sua frente usava de franqueza e não parecia preocupada em agradar. Queixava-se do atraso dos repasses financeiros ao Parque, da necessidade de melhorar o orçamento insuficiente e por aí ia. Exibia olheiras e uma aparência pouco cuidada.

Quando se foi o Rômulo – quem o conheceu sabe – me sorriu com aquele ar e feições de Papai Noel (barbas e cabelos brancos num rosto rechonchudo) e disse: ela é braba e também uma das pessoas mais bondosas que já conheci. Não se impressione com o jeito rude. Tudo isso aqui devemos a ela.

Tudo isso é o Parque Nacional Serra da Capivara, que além da natureza exuberante – muito sofrida pela seca severa – exibe o maior sítio rupestre, arqueológico do Brasil. Simplesmente espetacular.

Na minha modestíssima opinião todo estudante brasileiro deveria ser obrigado – com ajuda financeira do poder público – a visitar três lugares: a Amazônia, o sítio rupestre da Serra da Capivara e o Santuário de Abrolhos. Mas não é de preferências que desejo falar aqui.

Quero falar de determinação, de missão, de dedicação de uma vida inteira, de um legado fabuloso. Só para se ter ideia os achados arqueológicos do Parque – com as datações do Carbono 14 – trouxeram novas hipóteses sobre as migrações do Homem americano.

A região é pobre e está no Nordeste profundo, pouco atraente para nós do sudeste. Mas ali se agiganta um lugar que rivaliza com sítios turísticos do primeiro mundo: os desenhos rupestres lindos nas paredes das rochas, as escavações que se pode visitar e um centro – o Museu do Homem Americano – que é um assombro.

Mas o assombro mesmo é Niède, a quem reencontrei em 2015 quando estava a caminho do Jalapão (Tocantins) desta feita de férias, com amigas.

Resolvemos visitar o Parque. Para mim uma segunda vez e para as minhas quatro amigas a primeira.

Tivemos o privilégio de almoçar com Niède em sua modesta casa, entulhada de lembranças de mais de 40 anos de vida ali. Animais de estimação diversos, jardim possível no meio da Caatinga, com surpreendentes passarinhos gorjeando seus cantares diversos.

Fiquei muito impressionada. Com mais de 80 anos sua sagacidade e agilidade são visíveis. Dirigindo ela mesma uma 4×4 por trilhas difíceis, nos levou para conhecer novas descobertas, escavações recentes. Sítios que seriam ainda abertos à visitação.

A seca machuca a paisagem e ela se queixou dos criadores de gado que soltavam os animais no Parque para pastar.
Queixou-se do governo estadual e local, na demora de inaugurar o pequeno aeroporto que poderia incrementar o turismo no Parque e na cidade.

Falou com entusiasmo da fábrica de cerâmica que inaugurou, gerando 40 empregos locais, e que recebeu o selo de “sustentável” e outros prêmios que o Brasil desconhecia. Revelou o medo de ver tudo desmoronar após sua morte. Sua saúde claudica nestes últimos anos.

Meu Deus, a história dessa mulher e desse legado precisa de um registro melhor do que este texto despretensioso. O nosso país desconhece seus ambientalistas e estes heróis/heroínas que não se vergam nem aos ventos políticos nem às adversidades das circunstâncias. Niède não nasceu na França, mas trouxe recursos daquele país para erguer uma obra de inegável valor natural e histórico.

Rendo aqui as minhas homenagens a esta velha e honrada senhora. A este espírito desbravador. Ela ama o Brasil e o dignifica com sua vida e com seu trabalho.

Quando eu morrer, e se a reencarnação existir de fato – quero voltar e ser Niède Guidon.

Este texto faz parte da série que venho escrevendo desde março para o site Envolverde/Carta Capital, sobre o ambientalismo no Brasil.

Samyra Crespo é cientista social, ambientalista e pesquisadora sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins e coordenou durante 20 anos o estudo “O que os Brasileiros pensam do Meio Ambiente”.

 

Fonte

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